15 de março de 2018

CNV: A Empatia lubrificante da comunicação não violenta

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Os componentes da linguagem não violenta, como já foi dito, são quatro: observação sentimentos necessidades - pedidos. O objetivo da linguagem não violenta é estabelecer relações baseadas na empatia e na gratuidade, de forma a que as necessidades de todos sejam satisfeitas. A compaixão e a gratuidade são a filosofia de fundo na qual os quatro componentes operam, o meio em que operam e o objetivo final. Neste sentido a compaixão e gratuidade são ao mesmo tempo o princípio, o meio e o fim da linguagem não violenta.

Os alquimistas da Idade Média buscavam a pedra filosofal porque acreditavam que esta pedra tinha o condão de transformar em ouro tudo o que tocasse. Para a linguagem não violenta, a pedra filosofal é a empatia; ela é a varinha de condão que faz possível que os quatro componentes funcionem e que as pessoas vivam em gratuidade, harmonia e entendimento.

A comunicação não violenta funciona como um motor de carro de quatro pistões; os quatro pistões são os quatro componentes da CNV: observações – sentimentos – necessidades – pedidos. O contínuo movimentos destes, para cima e para baixo, dentro dos respetivos cilindros e ativado pela explosão do combustível é o que mantém o motor a funcionar e o carro em movimento. A gratuidade, ou o dar do coração, como diz Rosenberg, é o combustível que torna possível a combustão, explosão e o movimento dos pistões.  No entanto, para que estes funcionem sem parar, com um mínimo de desgaste, é preciso que estejam envolvidos e embebidos em óleo. Este óleo que facilita e torna possível todo o processo sem sobreaquecimento nem desgaste - é em CNV a empatia.

O que é a empatia?
Contemplando a multidão, encheu-se de compaixão por ela, pois estava cansada e abatida, como ovelhas sem pastor. Mateus 9, 36

Em linguagem não violenta, o termo empatia, usado pela psicologia em geral, é semelhante ao “unconditional positive regard”, termo usado por Carl Rogers, significam fundamentalmente o mesmo. É sair de si, ver a realidade como o outro a vê, é sentir com o outro, é fazer nosso, o sofrimento dos outros; é aceitar e apoiar uma pessoa independentemente do que tenha dito ou feito. Ser empático, é ser sensível ao sofrimento próprio e dos outros, comprometendo-se a aliviá-lo ou evitá-lo.

Expressar as nossas próprias observações, sentimentos, necessidades e solicitações aos outros faz   parte da CNV. A segunda parte é a empatia: o processo de conexão com o outro, adivinhando os seus sentimentos e necessidades. A conexão empática pode acontecer às vezes silenciosamente, mas em tempos de conflito, comunicar à outra pessoa que compreendemos os seus sentimentos e que nos importam as suas necessidades pode ser um poderoso ponto de viragem e a solução do conflito. Porém, demonstrar que temos tal entendimento não significa necessariamente que tenhamos que concordar em agir de maneiras que contrariem as nossas necessidades.

A linguagem da CNV ajuda-nos muitas vezes a relacionarmo-nos com os outros, mas o coração da empatia está na nossa capacidade de conectar com compaixão à nossa própria humanidade e à humanidade dos outros. Oferecer a nossa presença empática, neste sentido, é uma estratégia (ou pedido) através da qual podemos satisfazer as nossas próprias necessidades. É um presente para a outra pessoa e para nós mesmos, a nossa presença completa.

Quando usamos a CNV para nos ligarmos empaticamente, usamos os mesmos quatro componentes sob a forma de uma pergunta, já que nunca sabemos, com toda a certeza, o que se passa dentro do outro. A outra pessoa será sempre a autoridade final sobre o que acontece dentro de si mesma. A nossa empatia pode satisfazer a necessidade de entendimento do outro ou pode até ajudar à sua própria autodescoberta. Podemos perguntar algo como: “Quando tu vês, ouves…. Sentes-te... Porque necessitas... Gostarias de…?”

Empatia e auto empatia
“Charity begins at home” - É difícil a empatia ou benevolência pelos outros se não a tenho por mim mesmo. Se não me amo incondicionalmente a mim mesmo jamais poderei amar os outros incondicionalmente. Tanto a expressão dos nossos próprios sentimentos e necessidades como os palpites empáticos dos sentimentos e necessidades dos outros se baseiam numa consciência particular que é o coração da CNV. Esta consciência é nutrida pela prática da auto empatia.

Na auto empatia, dedicamos a nós mesmos a mesma compaixão e atenção para nós mesmos que damos aos outros quando os ouvimos usando a CNV. Isso significa darmo-nos conta de quaisquer interpretações e julgamentos que aplicamos a nós mesmos e que dificultam a clareza da nossa consciência em relação aos nossos sentimentos e necessidades. Essa consciência interior e clareza de sentimentos e necessidades ajuda-nos a expressarmo-nos junto dos outros e a recebê-los com empatia.

A prática da CNV implica a intenção de nos ligarmos com compaixão a nós mesmos e aos outros e uma capacidade de manter a nossa atenção no momento presente – o que inclui estar ciente de que, às vezes neste momento presente estamos a recordar o passado, ou a imaginar uma possibilidade futura.

 A auto empatia muitas vezes é fácil - damo-nos conta das nossas sensações, emoções e necessidades e sintonizamo-nos com quem somos. No entanto, em momentos de conflito ou reatividade aos outros, podemos sentir-nos relutantes em nos ligarmos a nós mesmos com compaixão, e podemos vacilar na nossa capacidade de nos mantermos no momento presente.

A auto empatia em momentos como este tem o poder de transformar o nosso estado desconectado do ser e de nos fazer regressar à nossa intenção compassiva e à atenção orientada para o presente. Com a prática, muitas pessoas descobrem que a auto empatia por si só às vezes resolve conflitos interiores e conflitos com outros, pois transforma a nossa experiência de vida.

Autoestima – Ser capaz de desmontar a autocrítica, o julgamento e o sentimento de culpabilidade, por um lado e, por outro, identificar e ligarmo-nos às nossas necessidades, valores e o que é importante para nós.  Como diz Rosenberg, a autocrítica, o sentimento de culpa e o julgamento são expressões dramáticas de necessidades não satisfeitas. Quando consigo descobrir e identificar essas necessidades ou valores, posso reformular esses sentimentos negativos e começar a sentir-me bem comigo mesmo, por ter conseguido ligar-me com o meu real e verdadeiro eu.

Empatia pelos outros – Para melhor conseguir sentir e expressar empatia pelos outros, convém seguir a título de conselho os avisos das passagens de nível: Para – Escuta - Olha. O outro pode dirigir-se a nós em forma de julgamento, crítica, buscando culpar-nos por algo que se passa consigo. Mas se os nossos ouvidos de comunicação não violenta estiverem ligados, não será critica o que ouvimos, mas sim uma expressão dramática de uma necessidade insatisfeita. Então, tudo que precisamos fazer é olhar para além da forma de expressão violenta - a crítica - para nos concentrarmos no conteúdo dessa expressão, que é a necessidade insatisfeita.

A linguagem violenta do nosso interlocutor tem de ser traduzida por uma linguagem não violenta, ou seja, não devo personalizar e encaixar as acusações como se me fossem dirigidas a mim; pelo contrário, devo desculpar a forma como foram feitas, para me concentrar psicanaliticamente no seu conteúdo e dar-me conta de que não passam de frustrações e expressões dramáticas de necessidades não satisfeitas.

Identificar essas mesmas necessidades requer tempo, requer que eu pare para pensar, respirar fundo, para ter tempo de traduzir e identificar essas necessidades que podem estar nas entrelinhas de um desabafo, de uma acusação ou de um insulto.

Para não manter a outra pessoa à espera do resultado final dos meus cálculos posso pensar alto e tentar adivinhar, perguntando tentativamente ao meu interlocutor quais são os seus sentimentos, as suas necessidades, o que é mais importante para ele.  Decerto o meu interlocutor ou concordará com a interpretação e compreensão que faço do seu discurso ou me ajudará, esclarecendo-me. Esta tentativa de ambos tentarmos compreender o que se passa faz com que o meu interlocutor se acalme e ele mesmo se ligue às suas necessidades e lentamente abandone os sentimentos negativos e a violência das palavras.

O coração de empatia está na nossa capacidade de nos ligarmos à nossa própria humanidade e com a humanidade dos outros, com o que há de mais real e de mais vivo em nós e nos outros, sem críticas, julgamentos, sentimentos de culpa, pretensões ou subterfúgios.

A linguagem não violenta ajuda-nos a ligarmo-nos uns aos outros e a nós mesmos, de forma a deixar aflorar a nossa empatia natural. É esta empatia que inspira, forma, informa e guia a observação, os sentimentos, as necessidades e os pedidos que fazemos a nós próprios e aos outros. A empatia é a teoria geral da linguagem não violenta e, ao mesmo tempo, o meio para chegar à harmonia e entendimento entre todos. É, como já dissemos, semelhante ao óleo do carro, que envolve as peças em movimento do motor para evitar o sobreaquecimento os atritos e o desgaste.

Pela empatia observamos sem avaliar, culpar ou etiquetar; sentimos e fazemo-nos responsáveis pelos nossos sentimentos, sem acusar e exortamos os outros a assumirem também responsabilidade pelos seus; expressamos as nossas necessidades ou valores, o que é importante para nós, sem subterfúgios e criamos as condições ou o ambiente para que os outros façam o mesmo; fazemos pedidos sem pretensões, exigências, obrigações ou chantagens, criando o ambiente para que os outros façam o mesmo.

O cérebro humano é uno e trino
A teoria da evolução das espécies, de Charles Darwin, diz-nos que a vida neste planeta evoluiu de um tronco comum, pelo que todas as formas de vida estão interligadas há muitos milhões de anos desde que a vida apareceu no mar. Os estados anteriores da evolução não se perderam, estando ainda presentes em nós. Desta forma, a neurociência diz-nos que temos três cérebros: o reptílico, o mamífero, e o cerebral. Estes encontram-se organizados em forma de matrioska ou boneca russa: o cerebral contém o mamífero que por sua vez contém o reptílico.

O cérebro reptílico – Situa-se no final da medula, é o mais primitivo e ocupa a parte mais interna e central do nosso cérebro. Permaneceu inalterado pela evolução, pelo que o partilhamos com todos os animais que têm espinha dorsal. É responsável pelas funções relativas à sobrevivência, desde o batimento cardíaco, a digestão e locomoção básica ao comportamento sexual. Funciona segundo o princípio do estímulo – resposta automática que pode ser de luta, fuga ou imobilização.

Sinónimos destas reações básicas no nosso dia a dia são: o desejo a aversão, a ignorância, o amor, o ódio, a indiferença, a esperança, o medo, o desinteresse. Altamente territorial, adquire e defende o seu território pela luta. O motor deste cérebro, é “Might is right”, o poder está certo ou justifica-se.

O cérebro mamífero – Corresponde ao telencéfalo, estrutura na qual se encontra o hipocampo e as amígdalas, que proporcionam ao mamífero uma maior consciência de si mesmo e do ambiente que o rodeia, dos amigos e dos inimigos. Como os mamíferos cuidam da sua prole durante mais tempo, do instinto surgem as emoções não só em relação aos filhos como também aos da própria espécie, nascendo assim a vida em grupo.

O cérebro racional - O último passo na evolução do cérebro aconteceu há cerca de cem milhões de anos, com o surgimento do córtex cerebral. O córtex cerebral ou cérebro racional não está presente apenas nos seres humanos. Seres inteligentes como os golfinhos, as baleias, os macacos também possuem esta última etapa da evolução cerebral.

No entanto, o homem possui o cérebro racional mais desenvolvido através do qual as emoções como as sensações corporais, comuns aos outros mamíferos, se transformam em sentimentos, como o amor, a compaixão, a empatia, ao serem mediadas por uma compreensão maior e mais racional.

Como perdemos as estribeiras
Quando estamos calmos funcionamos com o neocórtex, pensamos criticamente, resolvemos problemas, somos criativos e empáticos com os outros. Ao contrário quando estamos stressados e nos apercebemos de um comportamento menos positivo por parte de alguém, perdemos a conexão com o neocórtex, deixamos de sentir empatia e automaticamente nos ligamos ao cérebro mais primitivo o reptílico ficando reduzidos a três opções - ataca, foge ou esconde-te.

O stress ativa uma reação antiga concebida pela natureza para nos ajudar a enfrentar o perigo – o cérebro reptílico. Não podemos sentir empatia por um leão que corre na nossa direção, ou seja ver, as coisas desde a sua perspetiva. Pelo contrário, atacamos, fugimos ou escondemo-nos. Porém o leão pode estar disfarçado de uma criança de 5 anos, que raivosamente bate o pé e grita que não quer lavar os dentes. Imediatamente deixamos de ver a criança para ver o leão e reagimos contra ela como se de um leão se tratasse. Tal como Dom Quixote arremeteu, de lança em riste, contra moinhos de vento pensando que eram o inimigo.

Se em momentos como este conseguirmos lembrar que todo o comportamento é uma tentativa de satisfação de uma necessidade, conseguimos desligar o cérebro reptílico e manter-nos no córtex. Proveniente do nosso cérebro de réptil, muito do nosso comportamento é reativo - primeiro falamos ou atuamos só depois pensamos. É como se o nosso comportamento estivesse em modo de piloto automático.

Como melhor funcionamos
Relativamente às emoções negativas, como criticar e julgar os outros, sentir stress, medo, preocupação, egocentrismo, ressentimento, frustração, dor emocional não sanada. Contra estas emoções devemos aumentar a nossa auto-observação e autoconsciência, cuidar de nós mesmos, da nossa saúde física, emocional e espiritual. Devemos lutar contra o stress organizando melhor a vida para termos tempo para o desporto, para encontrar os amigos, para meditar e rezar.

O psicólogo Paul Gilbert distingue três grupos de emoções: as que têm a ver com a ameaça e autoproteção, as que têm a ver com a nossa atividade, conquistas e sucessos a que ele chama a nossa mente competitiva e, por fim as emoções que têm a ver com contentamento, sentir-se seguro, calmo relaxado, alegre e feliz.

Segundo Gilbert o primeiro grupo de emoções e o segundo são mais motivantes, pelo que é provável que sejam elas a despertar a nossa atenção. Mas isto só acontece se o permitimos. A nossa mente competitiva faz com que não nos importe perder uma pessoa para ganhar um debate; as notícias negativas dominam e estão na primeira página dos jornais, em letras grandes; as positivas estão perdidas no meio do jornal, pois poucos estão interessados nelas. Dar prioridade ao nosso cérebro reptílico só aumenta a nossa miséria, não nos faz mais felizes.

É certo que a compaixão não habita no centro do nosso cérebro; este, como sabemos, é ocupado pelo cérebro reptílico. No entanto, como observa Gilbert, está mais que comprovado que o nosso sistema imunitário, hormonal, cardiovascular e demais funções vitais, funcionam melhor quando pensamos, sentimos e atuamos a partir do nosso córtex ou cérebro racional - amando e sentindo-nos amados e não odiando e sentindo-nos odiados; apoiando e ajudando os outros e não os denegrindo ou ignorando deixa-nos mais felizes; a “pica” que o cérebro reptílico pode dar-nos é curta e normalmente traz-nos mais problemas.

Se o ser humano fosse violento por natureza como crê Hobbes com a sua máxima “Homo homini lupus” e a maior parte das pessoas conscientemente ou inconscientemente seguidoras do mito babilónico da criação, o homem seria mais feliz na violência, as suas funções vitais e órgãos funcionariam melhor num ambiente violento. A verdade, porém, como afirma Gilbert, é precisamente o contrário.

Para além de nos alertar e ajudar diante o perigo, o cérebro reptílico só nos traz problemas. Como os répteis não estabelecem relações com nada nem com ninguém, para eles tudo e todos são hostis. Assim sendo, o seu cérebro não pode ser de grande ajuda para o ser humano que é um ser relacional na sua essência.

Segundo uma lenda dos índios nativos da América do Norte, dois lobos lutam no nosso coração e na nossa mente, disputando entre si o nosso interesse e atenção: um é raivoso, vingativo, invejoso, ressentido e enganador, o outro é amoroso, empático, generoso e pacífico. Qual deles vai ganhar o nosso interesse e atenção? Aquele que mais e melhor alimentarmos. Pratica a empatia, mesmo sem a sentires, e sentirás empatia pelos outros.

O que não é empatia
No seu livro, Rosenberg cita a sua amiga Holley Humphrey, apontando alguns comportamentos comuns ou tentações em que caímos ao tentar ajudar os outros. A verdade é que estes nossos comportamentos não só não ajudam como até complicam e colocam em evidência a nossa dificuldade em verdadeiramente estar com o outro.

•    Aconselhar: "Acho que deverias ... ", "Por que é que não fazes assim…?"
•    Analisar: “Como é que começou?” “Quando foi a última vez que te sentiste assim?”
•    Competir pelo sofrimento: "Isso não é nada; olha o que aconteceu comigo".
•    Educar: "Isso pode até acabar por ser uma experiência muito positiva se tu ... "
•    Consolar: "Não foi culpa tua, fizeste o melhor que pudeste".
•    Contar uma história: "Faz-me lembrar uma ocasião ... "
•    Encerrar o assunto: "Anima-te. Não te sintas tão mal".
•    Solidarizar-se: "Oh, coitadinho ... "
•    Interrogar: "Quando foi que isso começou?"
•    Explicar-se: "Eu teria telefonado, mas ... “
•    Corrigir: "Não foi assim que aconteceu".

Como funciona a empatia
Empatia é entrar em contato com o que está vivo na outra pessoa, com o que está a acontecer com ela; é colocar-se no lugar dela. É calçar os seus sapatos, é ver a realidade da perspetiva do outro, vê-la como o outro a vê.  Muitas vezes, quando os outros se apercebem de que não estamos a conseguir ligar-nos empaticamente a eles, dizem de forma desesperada "Põe-te no meu lugar". Pensando eu que estava a ser empático ao dar conselhos ao meu pai procurando consolá-lo nos últimos dias da sua vida, ele calou-me dizendo, “bem fala o são ao doente”.

Ao ouvir estas palavras dei-me conta de que estava bem longe de demonstrar empatia pelo meu pai e ele fez-me ver que eu não estava com ele. Ele não precisava de uma solução rápida que sabia não existir, nem de conselhos, mas só de empatia e eu fui incapaz de lha dar. Pensamos que oferecendo soluções, dando conselhos, consolando fazemos com que o outro se sinta melhor, mas a crua realidade é que, longe de o fazer sentir-se melhor, apenas acrescentamos o sofrimento.

Já é difícil ser empático com aqueles que amamos, mas muito mais difícil será sermos empáticos com os que não amamos ou até com os que odiamos. Em CNV, a empatia é para todos. Sentir empatia é conseguir ver a beleza de uma pessoa por detrás do que quer que seja que ela diga ou faça. A verdadeira empatia tem três componentes:

Presença – O filósofo Martin Buber diz que a presença é a dádiva mais poderosa que uma pessoa pode dar a outra; é um componente importante da cura, alguns psicoterapeutas chegam até a dizer que a presença ativa corresponde a 90% do processo de cura. Mas não é fácil manter-se ativamente presente junto do outro: é necessário não trazer nada do passado para o presente.

Se começarmos a pensar sobre o que a pessoa está a dizer, se a analisarmos ou até se pensarmos em alguns conselhos para dar - que é preciso corrigir alguma coisa ou que vamos ajudá-la -  perdemos a qualidade da presença, uma vez que a compreensão intelectual não é empatia. Quando subimos para a nossa cabeça tentando entender e conceptualizar o que o outro nos diz, imediatamente deixamos de o ouvir e de estar com ele para estar apenas connosco mesmos.

Por exemplo, por vezes os sentimentos das pessoas podem ser uma reação a algo que não é correto do ponto de vista fáctico. Mesmo nesta situação devemos ser empáticos primeiro e corrigir depois; “Como foram estúpidos os americanos ao invadir o Iraque na crença de que Kaddafi possuía armas de destruição maciça”. A tentação é corrigir de imediato que o presidente não era Kaddafi, mas sim Saddam Hussein; porém, devemos recordar que a ligação empática é mais importante que a correção.

Simpatia não é empatia. Se eu mostrar simpatia, dizendo, "Estou triste pelo que te aconteceu", isso pode até ser adequado, mas apenas se antes eu tiver demonstrado empatia. Mostrar simpatia sem empatia, é retirar a nossa atenção à pessoa para a focar sobre nós mesmos, neste caso sobre o nosso sentimento de tristeza. Também não é empatia quando digo “Entendo o que sentes”. É demasiada pretensão da nossa parte afirmar tal coisa. Em CNV não dizemos que entendemos, procuramos demonstrar compreensão.

Focar a nossa atenção no aqui e agora – Se as pessoas partilham connosco a dor causada por factos passados, em vez de me transferir para o passado com a pessoa, devo manter-me no presente e focar a minha atenção no que a pessoa está a sentir no momento. Se eu a sigo na sua viagem ao passado, decerto não vou resistir em tentar compreender intelectualmente o que lá se passou. Então, para manter-me no aqui e agora tudo o que tenho que fazer é estar em contato com os sentimentos e necessidades da pessoa agora.

Neste caso, a pergunta a fazer é – “como se sente agora em resultado do que aconteceu no passado?” Por exemplo: se alguém partilha connosco as muitas vezes que o seu pai lhe bateu e medo que lhe causava, devemos inquirir sobre qual é o seu sentimento agora; se no passado sentia medo agora provavelmente não é medo o que sente, mas ira ou raiva e este é o sentimento que conta pois é o que sente aqui e agora. O mesmo devemos fazer quando a pessoa se perde em palavras e passa de uma história para a outra sem parar de falar. Interrompemos e perguntamos, “Desculpe, como se sente agora por causa do que acaba de me contar?”

Certificar-se parafraseando – Nunca devemos assumir que entendemos e que estamos conectados empaticamente com o que está a acontecer no interior da pessoa, ou seja, com os seus sentimentos e necessidades. Precisamos de o confirmar para ter a certeza e fazemo-lo parafraseando o que a pessoa nos disse, sobretudo perguntando: “Sente-se… porque tem necessidade de…”. O feedback do nosso entendimento é importante por duas razões: primeiro, se o nosso palpite for errado, a pessoa tem a oportunidade de nos corrigir; segundo, a própria pessoa pode precisar de alguma confirmação de que estamos realmente com ela, que estamos a acompanhá-la e que a compreendemos.

É difícil ligar-se empaticamente a uma pessoa que diz que vai suicidar-se porque o mundo fica melhor sem ela... A tendência é analisar, fazer perguntas, dar conselhos... Mas mais difícil ainda é ligarmo-nos empaticamente com alguém que nos critica ou que nos diz: “O teu problema é..." Temos de recordar que toda a critica é uma expressão dramática de uma ou várias necessidades insatisfeitas, pelo que ignoramos a critica como se não tivesse sido feita a nosso respeito e procuramos descobrir os sentimentos e necessidades por trás dela, conferindo com a pessoa quais são os seus sentimentos e necessidades, dando-lhe a possibilidade de nos corrigir se estivermos errados.

Empatia – simpatia - compaixão
Empatia - É visceralmente sentir o que o outro sente. Alguns psicólogos chamam-lhe "espelho de neurónios". A empatia pode surgir automaticamente quando vemos alguém a sofrer. Por exemplo, se virmos alguém a falhar o prego e martelar o dedo, imediatamente temos uma perceção bem real da sua dor; como se a sentíssemos também nós. Nem sempre a empatia é assim fácil, por isso, quando não vem automaticamente como neste exemplo, precisamos da nossa imaginação. É claro que a empatia não se aplica apenas para sentimentos desagradáveis, mas também os agradáveis. Muitas vezes, o sorriso de uma pessoa faz-nos sorrir também.

Simpatia - A maioria das pessoas confundem empatia com simpatia. Empatia é ser solidário, estar com o outro; simpatia é fundamentalmente estar connosco mesmos porque, ao contrário da empatia que é uma atitude, uma forma de ser e estar, a simpatia é um sentimento. Um sentimento que surge da compreensão da situação do outro. Se a simpatia se segue à empatia é positiva; se surge antes ou em vez da empatia, então não é positiva e não ajuda.

Compaixão – A compaixão leva a empatia e a simpatia a dar um passo mais em frente. Quando somos compassivos, sentimos a dor do outro (ou seja, empatia) ou reconhecemos que a pessoa está a sofrer (simpatia), e fazemos o nosso melhor para aliviar o sofrimento da pessoa.

A compaixão é o objetivo final do processo que começa com ser e estar com o outro, sentindo os seus sentimentos. Num primeiro momento, estamos simplesmente com a pessoa. Esta primeira etapa é insubstituível e a mais importante de todas. Só depois usamos a nossa cabeça   conceptualizamos e tentamos entender a sua situação para finalmente, movidos pela compaixão, darmos o nosso melhor para a aliviar.

Foi precisamente isto que Deus fez connosco ao enviar-nos o seu Filho; não tentou salvar-nos a partir de cima; primeiro fez-se um de nós, vestiu a nossa natureza humana e a partir daí mostrou simpatia pela nossa causa, comovendo-se com a nossa dor ao ponto de a sentir na sua própria carne. Isto mesmo diz a carta de São Paulo:

(Cristo) embora sendo Deus, não considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se;
mas esvaziou-se a si mesmo, vindo a ser servo, tornando-se semelhante aos homens. E, sendo encontrado em forma humana, humilhou-se a si mesmo e foi obediente até à morte, e morte de cruz! Filipenses 2, 6-8

Resumindo o que dissemos, a empatia é sentir o que o outro sente; a simpatia é o sentimento que resulta da compreensão que temos da sua dor; compaixão é a vontade de aliviar o sofrimento do outro.

O poder da empatia
Rosenberg menciona uma experiência que o seu professor Carl Rogers fez para provar que a empatia, por si só, podia curar emocionalmente. Para este teste, alguns doentes foram tratados por psicoterapeutas profissionais de diferentes escolas, outros doentes por leigos sem nenhuma formação em psicologia, usando apenas empatia. Pelos resultados obtidos ficou demonstrado que os que usaram empatia, fossem eles psicoterapeutas ou leigos, foram os que obtiveram os melhores resultados.

Por este teste e por experiência própria, Rosenberg conclui que a empatia em si mesma é a melhor forma para obter cura emocional, resolver conflitos, e conseguir a reconciliação entre pessoas e grupos.

Para que isto aconteça, o único requisito é que cada um dos indivíduos ou grupos antagónicos, primeiro, por intermédio de auto empatia descubram o que neles está vivo, ou seja, os seus sentimentos e necessidades e se deem conta de que são as suas necessidades insatisfeitas que provocam a divisão e conflito entre eles. Segundo, por intermédio da empatia, consigam ligar-se conectar com o que nos outros está vivo – a sua humanidade ao nível de sentimentos e necessidades. Quando esta empatia nos dois sentidos acontece, o conflito dissolve-se, a cura emocional e a reconciliação acontecem por si sós, como por magia, simplesmente por os sentimentos e as necessidades são universais.

Ocasionalmente, indivíduos e grupos podem concordar a nível de ideias e pensamentos.  A concordância a nível de sentimentos e necessidades está praticamente garantida pois ocorre sempre. É precisamente por isto que a empatia é o instrumento mais poderoso para a cura emocional a resolução de conflitos e a reconciliação entre indivíduos ou grupos.
Pe. Jorge Amaro, IMC


1 de março de 2018

CNV: Jesus de Nazaré e a redenção pela Não-Violência

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Um dos que estavam com Jesus levou a mão à espada, desembainhou-a e feriu um servo do Sumo Sacerdote, cortando-lhe uma orelha. Jesus disse-lhe: «Mete a tua espada na bainha, pois todos quantos se servirem da espada morrerão à espada. Mateus 26,51-52

“Quem com ferro mata, com ferro morre” – É o provérbio ou expressão popular que tem provavelmente as suas raízes no texto citado acima. A violência não só resolve qualquer conflito ou problema, como cria outros problemas. Fala-se da espiral de violência, pois facilmente esta se alastra, envolvendo cada vez mais gente. Através da violência a única paz que se pode atingir é a paz do cemitério, da morte, da destruição.

Jesus de Nazaré desafiou o sistema de dominação e a sua ideia basilar do valor redentor da violência. E não permaneceu muito tempo com vida. A Igreja com a responsabilidade de proclamar os seus ensinamentos; não o fez em grande medida, porque não os entendeu verdadeiramente, ou porque para sobreviver, teve de adaptar-se à cultura e aliar-se ao poder dominante.

O Cristo que a comunidade passou para a História foi um Cristo aguado, diluído, menos radical, menos revolucionário. No entanto, providencialmente, este Jesus de Nazaré que não singrou na comunidade cristã nem fez História, está contido nos evangelhos, e é através deles que nos damos conta da dimensão revolucionária dos seus ensinamentos.

Jesus rejeitou o poder autocrático, (Mateus 20, 25-28), apelou à equidade económica, (Marcos 12, 30-31), rejeitou a violência, (Mateus 5, 38-41), quebrou costumes que tratavam as mulheres como inferiores, (Lucas 10, 38-42), quebrou as regras da pureza ritual por separar as pessoas umas das outras, (Marcos 1, 40-45), desafiou a visão patriarcal da família (Lucas 11, 27), e rejeitou a crença de que Deus requer sacrifícios de sangue, (Mateus 9, 9-13).

Poder como serviço e não como domínio
«Sabeis que os chefes das nações as governam como seus senhores, e que os grandes exercem sobre elas o seu poder. Não seja assim entre vós. Pelo contrário, quem entre vós quiser fazer-se grande, seja o vosso servo; e quem no meio de vós quiser ser o primeiro, seja vosso servo. Também o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida para resgatar a multidão.» Mateus 20, 25-28

Quanto a vós, não vos deixeis tratar por “mestres”, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis “Pai”, porque um só é o vosso “Pai”': aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por 'doutores', porque um só é o vosso 'Doutor': Cristo. O maior de entre vós será o vosso servo. Quem se exaltar será humilhado e quem se humilhar será exaltado. Mateus, 23, 8-12

Jesus é anarquista não no sentido de defender que a sociedade não deva estar organizada e disciplinada, mas no sentido de afirmar que ninguém tem o direito de exercer poder sobre ninguém; o poder ou é serviço ou é malévolo.

Para Jesus todo o governo autocrático é naturalmente violento e opressivo. Jesus entende o poder como serviço e não como domínio sobre as pessoas. Jesus substitui o amor pelo poder, pelo poder do amor e do serviço aos outros. É este o caminho da grandeza e da popularidade que tanto buscam os poderosos.

Os que exercem o poder autocraticamente são temidos, e não amados; os líderes amados pelo povo são os que exercem o poder servindo; estes são os grandes na História da humanidade. Os grandes na nossa história pessoal são também aqueles que nos serviram e não aqueles que nos dominaram. Os nossos pais, professores, catequistas etc…

Igualdade e Equidade económica
Amarás o Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma, com todo o teu entendimento e com todas as tuas forças. O segundo é este: amarás o teu próximo como a ti mesmo. Não há outro mandamento maior que estes.» Marcos 12, 30-31

Num só mandamento Jesus une os dois valores onde assentam a vida humana. Em “amar a Deus sobre todas as coisas” significa não reconhecer nenhuma autoridade além de Deus, não se submeter a nada, nem a ninguém. Este é o garante da liberdade como valor onde assenta a dignidade da pessoa humana.

Por outro lado, como o ser humano não é uma ilha, a dimensão social assenta na igualdade; abaixo de Deus ninguém é mais que ninguém. A combinação destas duas dimensões vertical - do amor a Deus e liberdade, - e horizontal, no amor ao próximo como a nós mesmos, - forma a cruz símbolo do cristianismo.

Jesus alerta para o perigo das riquezas que fazem o homem insolidário e lhe barram a salvação (Marcos 10,25). Por isso, convida o jovem rico ao desprendimento e a repartir pelos pobres, para alcançar uma riqueza maior (Mateus 19,21). Louva Zaqueu pelo seu gesto de devolver e repartir o que lhe valeu a salvação (Lucas 19, 1-10). A partilha de bens materiais faz parte do critério de entada no Reino dos Céus (Mateus 25, 31-46).

Olho por olho dente por dente versus ama os teus inimigos
«Ouvistes o que foi dito: Amarás o teu próximo e odiarás o teu inimigo. Eu, porém, digo-vos: amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem. Fazendo assim, tornar-vos-eis filhos do vosso Pai que está no Céu, Mateus 5, 43-45

Ouvistes o que foi ditoEu, porém, digo-vos – Várias vezes no Sermão da Montanha Jesus utiliza esta construção gramatical para, ao mesmo tempo, expor cada um dos enunciados da ideologia antiga ou sistema de domínio, rebatendo-os um a um com a sua doutrina.

Jesus veio provar que o sistema de domínio não é a única forma de viver em sociedade; O Reino de Deus, que Jesus trouxe com a sua vinda ao mundo, é na verdade a única alternativa ao sistema de domínio, a única de facto. O Reino de Deus iniciado por Jesus é uma “win win situation”, todos ganham, ninguém perde, não há oprimidos nem opressores, nem vencidos nem vencedores.

Para o sistema de domínio, o homem é lobo do homem por isso tem de se convencer a si e os seus congéneres de que os seus inimigos são pérfidos e de que a única forma de viver em paz é destruí-los. Para Jesus, não há inimigos. Mas se os há, estes não se vencem com ódio. O ódio fá-los mais fortes; é como pretender apagar o fogo com gasolina. Só o amor os pode derrotar verdadeiramente.

Para funcionar, a violência redentora requer que algumas pessoas sejam declaradas inimigas, para que a sua eliminação pela violência seja vista como um ato redentor. Ao exortar-nos a amar os nossos inimigos, Jesus deixa a violência redentora sem a sua justificação moral para operar. Neste contexto Rosenberg disse que quando compreendemos as necessidades que motivam o nosso e o comportamento dos outros, deixamos de ter inimigos.

“No estrañeis dulces amigos que tenga mi frente arrugada, yo vivo em paz con los hombres y en guerra con mis entrañas”. António Machado

Inteligentemente, o sistema de domínio buscou limitar a violência entre pessoas colocando-a no interior da consciência de cada um. O superego freudiano é de alguma forma o “Cavalo de Troia” do sistema de domínio dentro de nós. A coerção do sistema de domínio é assim exercida pela própria pessoa sobre si mesma. Como dizia o poeta popular espanhol

Para os que em vez de exercerem a violência sobre si mesmos por vias do superego, escolhem exercê-la sobre os outros, o mito da violência redentora tem a lei do Talião do código Hamurabi, o código de leis mais antigo do mundo, também nascido na Babilónia. Como bem observava Gandhi, olho por olho dente por dente vai-nos deixar a todos desdentados e zarolhos.

A crença é que esta lei restaura o equilíbrio rompido quando alguém comete um crime contra o seu próximo; porém na realidade, apenas consegue uma trégua durante a qual os adversários aproveitam para se armar. Esta trégua parece um tempo de paz, mas na realidade é um tipo de guerra a “Guerra fria”.

Assim sendo o mundo nunca tem paz, pois os tempos de guerra quente alternam-se com períodos de guerra fria. Durante a guerra fria carregam-se as armas, durante a guerra quente disparam-se. A única paz possível dentro do mito da violência redentora é a paz do cemitério.

O amor ao próximo como a ti mesmo, e o amor aos inimigos parecem ser as únicas ideias que superam o mito da violência redentora e estabelecem uma paz verdadeira e duradoira. Jesus veio para fazer deste mundo o Reino de Deus, um Reino de justiça e paz, uma “civilização do amor” como o Papa João Paulo II gostava de repetir. O Sermão da Montanha é a Magna Carta ou Constituição desse Reino. A CNV é o idioma deste Reino.

A não violência redentora
Ouvistes o que foi dito: Olho por olho e dente por dente. Eu, porém, digo-vos: Não oponhais resistência ao mau. Mas, se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém quiser litigar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa. E se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele duas. Mateus 5, 38-41

O Código Hamurabi, que nasceu na Babilónia na mesma terra onde nasceu o mito da violência redentora, é o primeiro código de leis que a civilização humana conhece. Olho por olho e dente por dente, era uma lei desenhada para conter o escalar natural da violência, permitindo o uso controlado desta pela vingança, dentro do princípio da reciprocidade. Para Jesus esta não é a solução, pois opõe violência com violência.

Não oponhais resistência ao mau - Resistir violentamente, vingar-se ou vencer o mal por intermédio da violência, é deixar-se controlar pela violência e perpetuar o mito de que por ela se chega à salvação. Wink observa que este texto tem sido interpretado tradicionalmente como advogando a submissão passiva à opressão, pelo que, historicamente, o cristianismo rejeitou os ensinamentos de Jesus acerca da não violência como idealismo utópico, idealista e ingénuo.

A verdade, porém, é que o evangelho não ensina a não resistência ao mal; Jesus ensina a resistir, mas sem violência. Wink assegura-nos que se lermos as palavras de Jesus, no contexto histórico e cultural em que foram pronunciadas, fica claro que Jesus está advogando uma forma criativa de oposição não violenta à opressão, e não à submissão. Por outro lado, Wink entende que esta é uma má tradução do original grego que segundo ele, diz: “não reajais violentamente contra o mau”. Os exemplos a seguir são prova adicional disto mesmo.

Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra – A bofetada é dada com a mão direita pois a mão esquerda, segundo a lei dos judeus, só podia ser usada para tarefas impuras. Ora uma bofetada com a mão direita na face direita, só pode ser dada com as costas da mão.  Ainda hoje uma bofetada dada com as costas da mão não tem intenção de magoar fisicamente, mas sim de insultar humilhar e degradar.

Não era dada a uma pessoa de igual estatuto, mas sim a um inferior; era o tipo de bofetada que um mestre daria a um escravo, um marido à sua esposa, um pai a um filho, um romano a um judeu, para o recordar da sua posição de inferioridade e faze-lo regressar a ela. “Sapateiro à tua sovela”, dizemos em português.

Ao oferecera face esquerda, o agressor não pode voltar a agredir com as costas da mão, ou seja, não pode voltar a humilhar; para bater, teria que o fazer, desta vez, com a palma da mão coisa que só poderia acontecer entre pessoas do mesmo estatuto social. Se o agressor o fizesse, estaria a rebaixar-se à mesma condição do agredido.

Portanto, o ato de voltar a cara queria dizer naquele tempo “eu sou igual a ti em dignidade, não aceito ser humilhado”. Também não pode agredir com as costas da mão a face direita, pois esta está escondida, por isso mais que oferecer a esquerda ele está a ocultar a direita para não ser humilhado outra vez; está a rebelar-se e a deixar o mestre sem argumentos, ao não o poder agredir na esquerda sem se rebaixar e o reconhecer como igual.

Se alguém quiser litigar contigo para te tirar a túnica, dá-lhe também a capa – Para entender estas palavras é preciso estar ciente de que o sistema tributário de Roma levava os pobres agricultores a endividar-se, ao ponto de terem que pagar com as suas terras. Ficavam assim sem nenhum meio de sustento, completamente desfalcados e desprotegidos, ou seja, nus.

A parábola dos trabalhadores da vinha em Mateus 20, 1-16 refere-se aos que perderam as suas terras por terem ficado endividados se vêm agora na obrigação de todos os dias virem para a praça, na esperança de serem contratados. Ironicamente, o latifundiário contrata primeiro os que foram donos das terras pois esses conhecem bem o trabalho a fazer e só depois, precisando de mais mão de obra, volta à praça para contratar mais gente.

O endividado não tinha nenhuma hipótese de ganhar a causa pois o sistema favorecia o credor. Como vimos no caso de apresentar a outra face, e como veremos no caso de andar mais de uma milha, uma das regras da não violência é tomar a iniciativa; ao despojar-se da única coisa que lhe restava, a capa, e ficar nu, o endividado protesta e aponta o dedo ao sistema que assim o deixou.

A nudez era um tabu em Israel, mas a culpa não recaía sobre a pessoa que a exibia, e sim sobre os que a contemplavam e a tinham causado (Génesis 9, 20, 27). De facto, ainda hoje, em muitas situações, exibir nudez é uma forma de protesto. Despojar-se da capa e abandonar o tribunal nu equivale a dizer, “roubaste-me tudo, só me resta o meu corpo, que vais fazer agora?” As atenções e os olhares acusatórios voltam-se agora contra aquele que causou aquela nudez, o credor.

Como conclui Wink, o ensinamento de Jesus sobre a não-violência aponta para uma estratégia de confronto do sistema, desmascarando a sua crueldade essencial burlando-se das suas pretensões de justiça. Os que ouvem estes ensinamentos já não vão deixar-se tratar como se fossem esponjas espremidas pelos ricos. Aparentemente aceitam as regras do jogo dos ricos, exacerbando-as até ao absurdo e, expondo assim a sua crueldade. Ao despojar-se ante os seus companheiros, o que deixam a nu é precisamente o sistema e os seus credores.

Se alguém te obrigar a acompanhá-lo durante uma milha, caminha com ele duas – Era um costume no tempo de Jesus quem quer que fosse encontrado na estrada ou na rua, podia ser obrigado a servir, como aconteceu ao Cireneu que foi obrigado a carregar a cruz de Cristo (Marcos 15, 21).

No Império Romano, os soldados de alta patente, tinham escravos, burros, cavalos ou carroças para carregar a sua bagagem; o mesmo não acontecia com os de baixa patente por isso podiam obrigar quem quer que fosse a carregar a sua bagagem durante uma milha. Carregar esta bagagem por mais de uma milha era ilegal e punido por lei.

Como nas duas instâncias anteriores, a questão aqui é como os oprimidos podem recuperar a iniciativa e afirmar assertivamente a sua dignidade humana, numa situação que de momento não pode ser alterada, ou seja o domínio dos romanos. Não podia deixar de se sentir interpelado e provocado o soldado que não só não precisou de coerção para obrigar o judeu como até excedeu o previsto. Ao privar o soldado da previsibilidade da resposta da vítima, este ficou desequilibrado e sem autoridade moral.

Agora é o soldado que tem de pedir a bagagem de volta para evitar de ser castigado pelos seus superiores. O humor desta cena pode-nos ter escapado, mas dificilmente escapou aos ouvintes de Jesus, que se devem ter deleitado com a perspetiva de ter dado uma lição de moral. Concluindo, Jesus é contra a passividade e a violência; o mal pode ser confrontado e vencido sem o uso da violência.

A terceira via
Ante um perigo ou uma ameaça, “Fight ou flight” – luta (revolta armada, rebelião violenta, vingança) ou fuga (submissão, passividade, rendição, retirada) são as duas reações possíveis de qualquer ser vivo vertebrado pois estão impressas como veremos no nosso primeiro cérebro, o cérebro reptílico.

Segundo Walter Wink, Jesus oferece uma terceira via. Este novo caminho marca uma mutação histórica no desenvolvimento humano: a revolta contra o princípio da seleção natural. Com Jesus uma nova via emerge, pela qual o mal pode ser combatido sem ser espelhado. Estas seriam as diretivas que se deduzem do Evangelho:
  • não fiques inativo e toma uma iniciativa moral;
  • encontra uma alternativa criativa à violência;
  • asserta a tua humanidade e dignidade como uma pessoa;
  • reage à violência com desdém e humor;
  • quebra o ciclo de humilhação;
  • sê insubmisso recusando qualquer posição de inferioridade;
  • expõe a injustiça do sistema;
  • assume dinamicamente uma posição de poder;
  • envergonha e verga o opressor ao arrependimento;
  • mantem-te firme;
  • obriga os poderes a tomar decisões para as quais não estão preparados;
  • reconhece o teu próprio poder;
  • esta disposto a sofrer, em vez de te vingares;
  • obriga o opressor a olhar para ti sob um novo prisma;
  • priva o opressor de uma situação onde uma demonstração de força seja eficaz;
  • está disposto a pagar o preço por quebrar leis injustas;
  • vence o medo ao sistema de dominação e às suas regras.
Pe. Jorge Amaro, IMC