15 de dezembro de 2018

CNV - O idioma do Reino de Deus

2 comentários:
“Someday, after mastering the winds, the waves, the tides and gravity, we shall harness for God the energies of love, and then, for a second time in the history of the world, man will have discovered fire.” (“Um dia, depois de dominarmos os ventos, as ondas, os mares e a gravidade, dominaremos para Deus as energias do amor, e então, pela segunda vez na História do mundo, o homem descobrirá o fogo.” Pierre Teilhard de Chardin

No fim desta longa digressão por esta nova forma de falar com os outros e connosco mesmos, de ouvir os outros e a nós mesmos e de pensar sobre nós, sobre os outros e sobre o mundo em geral; depois de verificar que esta nova linguagem, para além de ser um idioma ou forma de falar, é uma filosofia de vida que é transversal a todas as ciências humanas, uma nova matriz ou paradigma para a vida humana em todas as suas vertentes sociais e individuais, concluímos que se trata da língua que se fala ou falará no Reino de Deus.

A CNV leva-nos a ser compassivos e a dar e receber compassivamente; o que quer que façamos, os serviços que prestamos aos outros e a nós mesmos, tudo tem como motivação única enriquecer a vida - a nossa e a dos outros - e a felicidade. Por isso nada fazemos por obrigação, dever, medo de castigos, nem na esperança de um prémio, por vergonha ou por sentimento de culpa. Entendemos que está na nossa natureza, nos nossos genes, o gosto pela gratuidade; nada fazemos que não seja por gosto; servimos os outros porque nos faz felizes contribuir para a sua felicidade.

Em CNV, não fazemos juízos de valor moral ou ético sobre o desempenho dos outros: não insultamos, nem humilhamos, nem criticamos, nem etiquetamos, não fazemos análises nem comparações, porque sabemos que tais atitudes colocam as pessoas na defensiva. Avaliamos o nosso desempenho e o dos outros na medida em que satisfaz as nossas necessidades/valores e as deles, com vista a aprendermos com os nossos erros e não para nos sentirmos culpados ou para culpabilizar os outros.

Sentimo-nos responsáveis pelos nossos próprios sentimentos e ações. O que os outros fazem ou dizem pode desencadear em nós sentimentos e emoções, mas não os causa. A causa destes está na forma como recebemos, julgamos e interpretamos o que os outros dizem ou fazem, assim como no facto de irem ou não ao encontro das nossas necessidades e expectativas nesse momento. Ao expressar os nossos sentimentos, expressamos também a necessidade satisfeita ou insatisfeita que lhe dá origem, usando sempre a fórmula: “Sinto-me… porque tenho necessidade… ou dou valor a…”

O Reino de Deus não a Igreja
“Jesus anunciou a vinda do Reino de Deus, mas o que veio foi a Igreja.” - Alfred Loisy (1857-1940)

Há uma descontinuidade entre Jesus de Nazaré e a Igreja; de facto, enquanto que a palavra “Ekklesía” só aparece duas vezes, e apenas no evangelho de S. Mateus 16,18; 18,1, em dois textos muito discutíveis, a expressão Reino de Deus ou Reino dos Céus, como prefere Mateus, aparece quase cem vezes.

Jesus inaugura o Reino, não a Igreja; não uma organização cultual ao serviço de uma religião ou sistema político, como foi mais tarde, mas sim um movimento igualitário de homens e mulheres, que não admite discriminações por razões de etnia, cultura, sexo, religião, classe social, ou procedência geográfica, e que tinha como finalidade uma sociedade onde reinasse a justiça, e a paz.

O anúncio do Reino de Deus teve um carácter subversivo, inconformista, utópico e desestabilizador do sistema de dominação violenta vigente antes de Jesus, durante o seu tempo e até aos nossos dias. É claro que o Reino de Deus não era tarefa de um só homem, mesmo sendo Jesus de Nazaré, nem de uma só geração, a dos seus discípulos e apóstolos.

Neste sentido, a Igreja nasce como fermento do Reino de Deus, como depositária da doutrina de Jesus e como corpo místico de Cristo, a reincarnação de Cristo em todos os aqui(s) e agora(s) da História da humanidade.

A Igreja está ao serviço da Missão que começou quando Deus enviou o seu filho ao mundo. A finalidade da Missão não é a “implantatio Ekklesia”, a implantação da Igreja, mas sim o Reino de Deus.

A absolutização da instituição eclesiástica e a sua identificação com o Reino, são heresias e perversões do movimento de Jesus. A Igreja tem a tentação de se idolatrar a si mesma, para evitar isto, o melhor antídoto é, como Jesus fez, colocar-se ao lado dos pobres, assumir a sua causa e trabalhar pela sua libertação e pela vinda do Reino de Deus.

Jesus e a violência religiosa
Jesus de Nazaré não cai de para-quedas na história de Israel, mas integra um movimento que começou antes dele e o levou até às últimas consequências: a destruição do Templo de Jerusalém (Mateus 24, 2), a destruição de si mesmo como Templo (João 2, 19) e a instituição de cada um de nós como templo do Espírito Santo. (1 Coríntios 6, 19-20)

Tudo começou quando uma seita do judaísmo, os monges do Qumran, abandonaram a religião oficial de Israel por a considerarem corrupta e violenta e se refugiaram em cavernas na margem do Mar Morto. Enquanto que todo o israelita para reentrar em comunhão com Deus, depois de violar a lei de Moisés, necessitava imolar um animal que atuava como bode expiatório: no mesmo momento em que Jesus morria na cruz, no Templo de Jerusalém imolavam-se mais de 3 mil cordeiros e cabritos.

A mim pertence todo o primogénito. E assim todo o primogénito macho do teu gado, quer graúdo quer miúdo, oferecê-lo-ás em memorial. Mas resgatarás com um cordeiro o primogénito do jumento ou, então, quebrar-lhe-ás a nuca. Resgatarás sempre o primogénito dos teus filhos e não aparecerás diante de mim de mãos vazias. Êxodo 34, 19-20

Não parece muito diferente das antigas religiões dos Maias e Aztecas onde se ofereciam sacrifícios humanos aos deuses. À volta do Templo criou-se a classe sacerdotal e, com esta, - o negócio e a corrupção instalaram-se; Anas e Caifás instruíam os oficiais do Tempo para que rejeitassem, classificando-os como defeituosos e impróprios para serem oferecidos a Deus, os cordeiros e cabritos que as pessoas traziam dos seus rebanhos, forçando-os assim a comprar os que procediam dos rebanhos dos sumos sacerdotes.

João Batista, sacerdote por ser filho de sacerdote, abdicou do Templo de Jerusalém para oficiar nas margens do Rio Jordão, trazendo assim a purificação dos pecados por via de água para fora dos muros do mosteiro de Qumran e, oferecendo-a a todos os descontentes da religião judaica.

Nem neste monte, nem em Jerusalém, haveis de adorar o Pai. Vós adorais o que não conheceis; nós adoramos o que conhecemos, (…) os verdadeiros adoradores hão-de adorar o Pai em espírito e verdade. João 4, 21, 23

Jesus vai além do Batista e oferece não já um batismo de água mas sim do Espírito Santo: perdoa os pecados da mesma forma que cura e traz a religião para onde as pessoas vivem, não no Templo de Jerusalém, nem no deserto onde por 40 anos o povo se relacionou com Deus, mas nas vilas e cidades onde o povo está. Deus volta a habitar com o seu povo, como outrora no deserto, morando numa tenda e caminhando com o povo.

Em Jesus, Deus volta a caminhar com o seu povo como a Arca da Aliança que ia para todo o lado, até para as batalhas. Deixou de estar confinado a um Templo, do qual alguém tinha uma chave e o usava como instrumento de poder. Deus é Espírito e, como tal, está em toda a parte, é inerente a tudo o que Ele criou.

Fim do pensamento dualista
O lobo habitará com o cordeiro, e o leopardo deitar-se-á ao lado do cabrito; o novilho e o leão comerão juntos, e um menino os conduzirá. A vaca pastará com o urso, e as suas crias repousarão juntas; o leão comerá palha como o boi. A criancinha brincará na toca da víbora e o menino desmamado meterá a mão na toca da serpente. Isaías 11, 6-8

No reino de Deus não há ódios porque não há inimigos, os antagonismos são todos superados: os animais, antes inimigos uns dos outros, vivem agora em harmonia uns com os outros e com o ser humano.

Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus. Gálatas 3, 27-28

Entre os humanos dá-se uma autêntica revolução francesa, extinguem-se as classes sociais e as castas, o sangue azul, a escravatura e o senhorio, o sexismo, a xenofobia e a homofobia; todos são iguais perante Deus que é Criador de tudo e Pai de todos, pelo que Jesus nos aconselha a que não usemos o título de Pai, ou mestre, ou doutor com outro que não Deus; não admitamos ninguém a  cima de nós, nem vejamos a ninguém abaixo de nós.

Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar já não existia. Apocalipse 21, 1

O reino de Deus é o novo céu, a nova terra, onde o mar, que para os hebreus era o símbolo do mal, já não existe; como nos encontramos para além dos antagonismos humanos e animais, também a diferenciação entre mal e bem deixa de existir: Deus é bom e só criou coisas boas. - O ser humano é a obra prima da criação de Deus, portanto só pode ser sumamente bom.

Transformarão as suas espadas em relhas de arados, e as suas lanças, em foices. Uma nação não levantará a espada contra outra, e não se adestrarão mais para a guerra. Isaías 2, 4

Como o mal deixa de existir, deixa de existir também a sua expressão máxima, a guerra, pelo que as armas de guerra, agora obsoletas, são forjadas e derretidas outra vez para fazer delas armas de paz. O próprio Jesus ao entrar em Jerusalém como rei não vem montado num cavalo, animal usado para a guerra e símbolo de poder e ostentação, vem montado num animal que é um verdadeiro símbolo de paz e humildade - o burro - pois os burros ainda hoje nos países pobres são o único transporte de mercadorias.

No monte Sião o Senhor do universo preparará para todos os povos um banquete de carnes gordas, acompanhadas de vinhos velhos, carnes gordas e saborosas, vinhos velhos e bem tratados. Neste monte, Ele arrancará o véu de luto que cobre todos os povos, o pano que encobre todas as nações. Isaías 25, 6-7

Por fim, tanto para Isaías como para Jesus, quatro séculos mais tarde, a melhor forma de representar o reino é através de um banquete, onde há prazer e alegria, diversão e convivência humana baseada no respeito e no amor. Um banquete no qual, na eventualidade de faltar o vinho da alegria, Jesus transformará a água, destinada à purificação, no vinho mais generoso que jamais se produziu. (João 2, 1-11)

CNV – A solução para todos os males
Our survival as a species depends on our ability to recognize that our well-being and the well-being of others are in fact one and the same. (A nossa sobrevivência enquanto espécie depende da nossa capacidade de reconhecer que o nosso bem estar e o bem estar dos outros são, na verdade, uma só coisa.) Marshall Rosenberg

A comunicação não violenta é a panaceia, o medicamento que cura todos os males, individuais e sociais, a pedra filosofal que transforma tudo em ouro, a teoria geral de tudo, o paradigma, a matriz de um mundo novo, do Reino de Deus.

A CNV pode ser eficazmente aplicada a todos os níveis de comunicação e em diversas situações: íntima, em relacionamentos, famílias, escolas, organizações e instituições, terapia e aconselhamento, negociações diplomáticas e de negócios, disputas e conflitos de qualquer natureza.

Ajusta a cosmovisão do ser humano, afirmando que o homem não é naturalmente mau como afirma o mito babilónico, mas naturalmente bom como afirma o mito bíblico e que a violência não está nos nossos genes, mas é antes uma doença, um problema que devemos resolver.

Desmascara também o mito da violência redentora, onde a violência se apresenta como a solução para si mesma. A violência não resolve nenhum problema e cria outros. Não é com ódio que se vencem os nossos inimigos; ao contrário do ódio que só os faz mais fortes, só o amor derrota verdadeiramente os nossos inimigos.

Ao amar os nossos inimigos, como Jesus nos disse que fizéssemos, expomos a falácia do mito da violência redentora e privamos o sistema de dominação de sua justificação moral. Ao longo da história, para sobreviver, o sistema de dominação acusava e declarava certas pessoas como "maus" e "inimigos" e assim justificava o uso da violência contra eles.

Substituindo a justiça retributiva pela justiça reparadora, reconcilia-se de uma forma sã e positiva a vítima com o criminoso de uma forma que os dois saram a ferida infligida e o infrator repara ou paga pelo seu crime não ao Estado, apodrecendo numa prisão, mas à vítima restabelecendo dignidade inicial desta e reabilitando-se a si mesmo para voltar a viver em sociedade

Estabelece uma nova relação com o nosso planeta baseada num desenvolvimento sustentável e numa coexistência pacífica e não numa exploração desenfreada dos recursos do planeta, pensando só nos próprios interesses mesquinhos de hoje, numa atitude irresponsável que pensa “quem vier depois de mim que se arranje”.

Nas escolas, como diz Rosenberg, para além das competências básicas de leitura, escrita e matemática, as crianças precisam de aprender a pensar por si mesmas, a encontrar por si mesmas o sentido e o significado do que aprendem, assim como a trabalhar e a viver juntas.

A CNV é a forma melhor e mais positiva de lidar com a ira e resolver conflitos, mesmo os de longa duração, desde que, como diz Rosenberg, as pessoas abdiquem de se criticar, julgar e analisar uns aos outros e entrem em contacto com as próprias necessidades e com as necessidades dos outros. Uma vez identificadas as necessidades de cada um dos envolvidos no conflito, é possível resolvê-las sem cedências e para satisfação de todos.

Subjacentes a toda a ação humana estão necessidades que as pessoas procuram satisfazer. O conhecimento, a identificação e a compreensão dessas mesmas necessidades, cria certamente um ponto de encontro e uma base que possibilite a cooperação e, mais globalmente, a paz.

Compreendermo-nos uns aos outros, ao nível das nossas necessidades, cria comunhão porque, a este nível humano mais profundo, as semelhanças entre nós superam as diferenças, o que origina uma maior compaixão.

Quando focamos a nossa atenção nas nossas necessidades mútuas, sem interpretar, criticar, culpar, esta observação nua e crua espevita a nossa criatividade, de tal modo que as soluções afloram naturalmente à nossa consciência. A esta profundidade, conflitos e mal-entendidos podem ser resolvidos com maior facilidade.

Seguindo os passos de seu mestre Carl Rogers, inspirado no conceito de compaixão presente em todas as religiões,  na compreensão teológica e antropológica de Walter Wink e na visão do futuro de Teilhard de Chardin, com a comunicação não violenta sendo, muito mais do que uma língua, Marshall Rosenberg recriou à sua maneira, o paradigma, a matriz, a cosmovisão do Reino de Deus, tal como Jesus de Nazaré a tinha idealizado há dois mil anos.

10 etapas para a paz
  1. Observa objetivamente o que os outros dizem ou fazem. Sempre que necessário, repete essa observação para os outros, sem incluir análises, interpretações, julgamentos ou avaliações de qualquer espécie. No caso de teres de incluir algum destes elementos, assume essa responsabilidade.
  2. Os sentimentos e as necessidades constituem a essência de uma pessoa; são a manifestação mais real da nossa vida no momento presente. Como tal, os sentimentos e as necessidades são universais, ou seja, todos os seres humanos de todos os tempos e lugares têm os mesmos sentimentos e necessidades.
  3. Conhece-te a ti mesmo, aumentando o teu vocabulário de sentimentos e necessidades para estares mais consciente do que se passa contigo e assim poderes ajudar os outros no mesmo processo. Certifica-te de que estás tão interessado em conhecer e satisfazer as necessidades dos outros como estás em satisfazer as tuas.
  4. Como alternativa ao tomar a peito o que te dizem, reagir, concordar ou discordar, tenta sintonizar-te com os sentimentos e necessidades implícitos no que a pessoa disse, pois, todas as críticas, insultos, explosões de ira e todo tipo de mensagens negativas são trágicas expressões de sentimentos e necessidades.
  5. Se te sentires, irritado, triste, deprimido, tenta descobrir que necessidade tua não está a ser satisfeita e que estratégia usar para a satisfazer, em vez de atribuíres um veredito e concluir que algo de mal se passa contigo ou com os outros. Usa o mesmo processo com os teus erros e faltas; faz o luto, em vez de te culpares e humilhares.
  6. Certifica-te de que estás ligado empaticamente a alguém antes de lhe pedires alguma coisa; e, quando eventualmente pedires, certifica-te de que é um pedido e não uma exigência.
  7. Em vez de afirmares o que não queres que os outros façam, na esperança que o outro adivinhe o que tu verdadeiramente queres, diz concretamente o que desejas que o outro faça.
  8. Em vez de declarar o que queres que alguém seja, afirma que ação em concreto gostarias que a pessoa realizasse de modo a orientá-la na direção do que queres que ela seja.
  9. Quando alguém te solicita algo, em vez de dizeres “não”, refere a necessidade que te impede de dizer “sim”. Quando alguém responder “não” a um pedido teu, ouve a necessidade que o impediu de dizer “sim”.
  10. Em vez de elogiar alguém por ter feito algo do teu agrado, expressa a tua gratidão referindo que necessidade tua a sua ação satisfez.

Termino com um pequeno conselho, do criador e fundador da linguagem da não-violência, (Marshall Rosenberg 1934-2015): por muito impressionados que estejamos com os conceitos da CNV, é somente através da sua prática e uso que as nossas vidas serão transformadas... e, acrescento eu, o Reino de Deus se tornará numa realidade.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de dezembro de 2018

CNV - Para além do bem e do mal

1 comentário:
Marshall Rosenberg iniciou a sua carreira como psicoterapeuta na área da psicanálise ou psicologia humanista. Ao dar-se conta do pouco sucesso que a psicoterapia tinha na resolução, dos problemas das pessoas e na mudança do seu comportamento, mesmo quando descobriam por intermédio da psicanálise a origem dos seus males, mudou radicalmente de orientação. Inspirado pelas religiões, por filósofos e teólogos, descobriu a técnica da comunicação não violenta e fez-se à estrada, dando, partilhando a sua descoberta gratuitamente, através de workshops em mais de cinquenta países.

Rosenberg pouco se preocupou com as implicações da sua técnica para saberes como a filosofia do direito, a ecologia, a antropologia cultural, a sociologia, a teologia e a ética. Fez afirmações aqui e ali sobres estes temas, mas não desenvolveu sistematicamente nenhum deles. Na verdade, escreveu muito pouco, praticamente só um livro, onde explicou de forma muito coloquial, a sua técnica. - A única exceção foram as escolas-girafa que ajudou a criar para que as crianças fossem educadas nesta nova linguagem e filosofia de vida, na esperança de que se alastrasse ao resto do mundo.

Muitos dos que entram em contacto com a comunicação não violenta, dão-se conta de que, mais que uma linguagem ou técnica linguística, a CNV é uma filosofia de vida. Vimo-nos na obrigação de desenvolver alguns temas porque entendemos que esta nova filosofia de vida requer uma mudança de mentalidade na forma como temos vindo a estudar as ciências humanas. A ética é talvez o assunto mais espinhoso sobre o qual Rosenberg fez afirmações soltas, mas que nunca abordou sistematicamente.

Sabemos que foi contra todas as avaliações moralistas e dualismos, como certo/errado, mau/bom, correto/incorreto, adequado/inadequado. Como ele disse: na vida, em vez de jogarmos o jogo “como tornar a vida maravilhosa”, jogamos o “quem está certo/quem está errado, quem tem razão/ - quem a não tem. Conheceis este jogo? É um jogo onde ninguém ganha, todos perdem”. Será que Rosenberg era contra a ética? Será que defendeu que esta devia desaparecer por sempre ter sido um instrumento de dominação?

A origem do mal
Eu sou o Senhor e não há outro, não existe outro Deus além de mim. (…) Formo a luz e crio as trevas, dou a felicidade e mando a infelicidade. Eu sou o Senhor, que faço todas estas coisas. Isaías 45, 5, 7

 “Disseste-me, meu Deus para acreditar no inferno. Mas proibiste-me de pensar…em qualquer homem como maldito”.   Pierre Teilhard de Chardin

O jesuíta francês Teilhard de Chardin, no intuito de reconciliar o livro do Génesis com a ciência da evolução das espécies, começa por afirmar sem rodeios que Adão, como figura histórica, que ao pecar trouxe o mal, o sofrimento e a morte, nunca existiu.

Logo a seguir, opõe-se a S. Paulo em Romanos 8, onde se diz que o sofrimento, o mal e a morte, são consequências do pecado de Adão e Eva, afirmando que o sofrimento, o mal e a morte sempre existiram. Para Teilhard de Chardin, e como sugere o texto de Isaías 45, se o mal existe no mundo é porque sempre existiu e, de alguma forma, Deus é responsável por isso pois, como afirma o mesmo texto, não há outro Deus.

O Jardim do Éden foi criado por Deus, a árvore do conhecimento do bem e do mal foi lá colocada por Deus; ou seja, Deus para preservar a liberdade do Homem, criou uma alternativa a si mesmo abrindo a possibilidade ao mal. Não criou o mal em si nem os males concretos, esses são da única responsabilidade do Homem pelo uso errado da sua liberdade.

Deus que existe na eternidade para além do bem e do mal, criou uma criação boa em si mesma porque Deus é bom, mas aperfeiçoável e colocou nesta criação um homem livre, com a capacidade para a aperfeiçoar; um mundo já perfeito seria uma pura extensão de Deus não diferente de Deus, e o homem não teria nada que fazer e, claro, não seria livre.

Porém, algo que pode ser aperfeiçoável pode ser também suscetível de se degradar. Logo, na sua primeira ação sobre a criação, Adão, em vez de a aperfeiçoar, arruinou-a; como dizem os provérbios, “Saiu-lhe o tiro pela culatra” ou “Foi pior a emenda que o soneto”.

O pecado original: usurpação do critério de bem e de mal
O Senhor Deus levou o homem e colocou-o no Jardim do Éden, para o cultivar e, também, para o guardar. E o Senhor Deus deu esta ordem ao homem: «Podes comer do fruto de todas as árvores do Jardim; mas não comas o da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque, no dia em que o comeres, certamente morrerás.» Génesis 2, 15-17

Deus criou o ser humano e colocou-o num Jardim para que vivesse a vida em plenitude; tinha liberdade plena para fazer tudo o que desejasse, mas, como cláusulas de um contrato em letra pequenina, não podia comer do fruto, nem tocar na árvore do conhecimento do bem e do mal que estava no centro do Jardim.

Que significa a árvore do conhecimento do bem e do mal e por que está colocada no centro do Jardim? Se o Jardim significa vida em plenitude, felicidade e a realização de todas as nossas potencialidades, um rigoroso discernimento entre o mal e o bem, entre o que contribui ou não para essa felicidade, é o centro dessa vida em plenitude.

De quem é a prerrogativa do discernimento entre o bem e o mal? Decerto não é nossa, pertence a Deus, o critério é Dele; sabe melhor o Criador como deve funcionar a criatura que a própria criatura. Portanto, se a prerrogativa ou o critério do discernimento entre o bem e o mal tivesse permanecido com Deus, a nossa vida teria sido até agora um mar de rosas.

Ao comerem do fruto proibido, na sua mente, na sua vontade e na sua liberdade, tornaram-se eles mesmos no critério do bem e do mal, usurpando essa prerrogativa a Deus. Fizeram o que Prometeu fez na mitologia grega: roubar o fogo aos deuses. De agora em adiante, somos nós quem decide o que é certo e o que é errado, o que é mau e o que é bom. Este foi o erro fundamental de Adão e Eva.

A serpente tinha razão, eles de facto seriam “como deuses”, por terem usurpado uma prerrogativa que era só de Deus. Mas é claro que, na realidade eles não se tornaram deuses, muito pelo contrário foi tudo uma ilusão, pois tiveram de pagar o preço da sua usurpação. Pensaram que estavam a fazer o correto – na verdade, ninguém faz o mal pensando que está a fazer o mal, nem mesmo Hitler que pensava que estava a livrar o mundo de uma peste, exterminando 5 milhões de judeus.

Enquanto Deus era Deus e a criatura era criatura, todos olhavam para Deus em busca de inspiração e orientação para as suas vidas, havia um único critério. Enquanto Deus era Pai todos éramos irmãos; a usurpação do lugar de Deus criou divisão, rivalidade e conflito, pois todos querem ocupar esse lugar.

Quando eu digo que sou o critério do bem e do mal e tu dizes que também o és; quando eu quero ocupar o centro e tu também queres, entramos em conflito, somos como dois grandes planetas que querem ocupar o mesmo lugar, o lugar do Sol.

A partir do momento em que os nossos pais comeram do fruto, sentiram-se nus, ou seja, inseguros e vulneráveis, pois todos queriam ser deuses. A violência, a rivalidade e a competição estabeleceram-se, porque todos tinham que se vestir e proteger para se defenderem uns dos outros. Os deuses não se dão bem uns com os outros:  já encontramos esta rivalidade tanto na mitologia babilónica, como na grega e na romana.

Parafraseando Rosenberg a este respeito, podemos dizer que enquanto estávamos no Jardim do Éden jogávamos o jogo de "Como tornar a nossa vida maravilhosa"; quando roubamos a Deus a prerrogativa e o critério do bem e do mal, começámos a jogar o jogo de "Quem está certo/- quem está errado", e temo-lo jogado desde aquele tempo até agora…

Jesus devolve a Deus a prerrogativa sobre o bem e o mal
Quando se punha a caminho, alguém correu para Ele e ajoelhou-se, perguntando: «Bom Mestre, que devo fazer para alcançar a vida eterna?» Jesus disse: «Porque me chamas bom? Ninguém é bom senão um só: Deus». Marcos 10, 17-18

Parece insólita a reação de Jesus ao ser chamado “Bom Mestre”. Sabemos que Ele aproveita todas as deixas para ensinar algo. Se não quisesse ensinar nada neste caso podia ter ignorado a forma como o jovem o qualificou, passando ao ponto seguinte que, segundo o evangelho, era certificar-se do cumprimento dos mandamentos. Ao contrário Jesus rejeita a qualificação dizendo “Porque me chamas bom? quem és tu para me julgar, porque tomas para ti e o critério do bem e do mal?” A prerrogativa do bem e do mal pertence a Deus e somente a Ele.

Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados. Lucas 6, 37

Tanto na forma como viveu, no seu comportamento, como nos seus ensinamentos, Jesus devolve a Deus a prerrogativa do bem e do mal. Por isso Ele não condenou Zaqueu, o publicano, pelos seus muitos crimes financeiros (Lucas 19, 1-10) ou a mulher apanhada em adultério pelos seus pecados sexuais (João 8, 1-11), nem sequer a Samaritana pelos seus divórcios compulsivos (João 4, 1-42). Ao contrário dos fariseus, nunca se considerou a si mesmo justo e os outros pecadores. Nunca julgou ninguém e aconselhou-nos a fazer o mesmo.

A parábola do trigo e do joio mostra isto mesmo claramente; o trigo cresce com o joio e um parece-se com o outro de tal forma que só Deus ao fim da ceifa pode discernir o que é trigo do que é joio (Mateus 13, 24-43). No nosso mundo, na nossa sociedade, há muitos lobos vestidos de cordeiros e cordeiros vestidos de lobos; só Deus conhece verdadeiramente a identidade de cada um, por isso dizemos “Livre-me Deus dos meus amigos, que dos meus inimigos me livro eu”. Nós julgamos pelas aparências, Deus vê o coração de cada um.

Só no Reino de Deus, ou segundo a parábola, só no tempo da colheita é que o bem e o mal podem ser perfeitamente diferenciados. Até lá, e enquanto vivemos ainda nesta terra, devolvamos a Deus o que só a Ele pertence e evitemos julgar os nossos irmãos tal como Jesus fez e nos aconselhou a fazer.

Alguém poderia ainda pensar que a capacidade para diferenciar o bem do mal afinal não é um castigo, mas sim um prémio, uma vez que, esta faculdade existe em todas as religiões e sistemas éticos. Maimonides, judeu do Reino de Granada, convertido ao Islão no século XII, aristotélico em quem S. Tomás de Aquino se inspirou, responde a esta questão dizendo que definitivamente foi um castigo e não um prémio.

Longe de ganhar uma faculdade, Adão e Eva perderam uma: quando roubaram a Deus o critério de diferenciação do bem e do mal, entrando no Seu domínio, perderam o paraíso real de estar em harmonia com a ordem natural das coisas.

Isto leva-nos mais uma vez ao coração da CNV que consiste em diferenciar observações ligadas ao que é objetivamente observável, das interpretações e avaliações subjetivas do que observamos e que nos levam à arbitrariedade e ao relativismo, definitivamente à área da opinião, ao campo da moral, ao declarar isto ou aquilo como bom/mau, certo/errado, agregando à realidade observável algo que objetivamente não está lá.

No momento em que avalio o meu próximo e o julgo como bom ou mau, abandono o mundo do que é direta e objetivamente observável, sou expulso do paraíso para entrar no campo do subjetivismo e arbitrariedade; abandono o campo natural do ver, sentir, necessitar e pedir, para ocupar o lugar Daquele que tudo sabe e se considera como o padrão, a medida exata de tudo - Deus.

Nunca poderemos saber se algo é verdadeiramente mau ou bom. “Não há males que por bem não venham” e “Deus escreve direito por linhas tortas”, diz o povo. Tudo o que podemos saber e nos interessa saber é se algo vai ao encontro e satisfaz, ou não, as nossas necessidades e as dos outros.

Até ao pecado, Adão e Eva, eram inocentes como crianças e, como tal, observavam sem julgar. Ao perderem a inocência com o erro que fizeram, passaram a julgar sem ver e julgaram mal, sempre julgarão mal porque o julgar pertence a Deus. Só Ele pode julgar porque só ele sabe tudo.

Quem luta com monstros deve velar por que, ao fazê-lo, não se transforme também em monstro. E se tu olhares, durante muito tempo, para um abismo, o abismo também olha para dentro de ti. Nietzche

O que acontece quando colocamos de lado as nossas competências e começamos a emitir vereditos sobre o que está mal e o que está bem? Acabamos por interferir com a possibilidade de entendimento humano, ligação e colaboração, e semeamos as sementes da divisão, violência e guerra. É precisamente isto que temos feito nos últimos 10.000 anos, uns tentando convencer os outros da sua visão individual ou coletiva do que é o bem e do que é o mal.

O objetivo da CNV é voltar ao Jardim do Éden abdicando ou transcendendo a nossa tendência ou vício de julgar, voltando ao estado natural de observar e sentir, tomando consciência das nossas necessidades e das dos outros e, em conjunto, pedir e procurar a melhor estratégia para as satisfazer. Desta forma, seremos capazes de voltar ao estado de “verdadeiramente vivos”, de S. Ireneu, readquirindo a filiação divina que tínhamos perdido e finalmente ter vida e vida em abundância, como Jesus disse que veio trazer (João 10,10).

Sede perfeitos ou misericordiosos?
Sede perfeitos como Deus vosso Pai é perfeitoMateus 5, 48

Sede misericordiosos para com os outros, assim como vosso Pai é misericordioso para convosco. Lucas 6:36

São Lucas deu-se conta da falácia do perfeccionismo e deu a volta ao texto judaizante de Mateus; não estamos chamados a imitar a perfeição de Deus pois nunca conseguiremos ser perfeitos como Ele. Estamos sim chamados a imitar a sua misericórdia e compaixão, palavras e conceitos bem conhecidos da bíblia que inspiraram Rosenberg a criar a técnica e a filosofia da comunicação não violenta.

A minha perfeição pode ser uma razão de orgulho, como era para os fariseus no tempo de Jesus e certamente não aproveita a ninguém; pelo contrário, pode ser razão para discriminar e julgar os outros que achamos menos perfeitos que nós.

Ao contrário da perfeição, valor individual que me afasta dos outros, a misericórdia é também um valor individual, mas tem alcance social, pois não se pode ser misericordioso sem praticar misericórdia e não se pode praticar misericórdia sem fazer atos de misericórdia para connosco mesmos e para com os outros. O misericordioso é tolerante com os seus próprios defeitos e com os dos outros; o perfeccionista é intolerante para consigo próprio e para com os outros.

The goal of life is not to become perfect but to become progressively less stupid  (O objetivo de vida não é tornarmo-nos perfeitos mas tornarmo-nos progressivamente menos estúpidos) M. Rosenberg – O perfeccionismo não é um valor, a perfeição objetiva não existe; não há uma meta objetiva uma bitola para todos. O perfeccionismo é doentio pois coloca-nos num estado de permanente angústia, stress e ansiedade. Não somos, portanto, chamados a ser perfeitos, mas sim a aperfeiçoarmo-nos, não somos chamados a dar o melhor, mas a dar o nosso melhor.

Tem, portanto, razão Rosenberg ao dizer que o objetivo da vida não é sermos perfeitos, mas sermos cada vez menos estúpidos, ou seja, o nosso objetivo é conquistar terreno à estupidez. É certo que conquistar terreno à estupidez tem como consequência sermos cada vez mais perfeitos, mas este não é o objetivo, é um subproduto do crescimento. Tomando como analogia os efeitos primários e secundários de um medicamento, a perfeição é um efeito secundário, o efeito primário é ser menos estúpido.

Anything worth doing is wort doing poorly(Tudo o que vale   a pena fazer vale a pena fazer mal) M. Rosenberg – Para conquistar terreno à estupidez devemos aceitar os nossos erros, como parte do progresso, e nunca deixar de atuar ou tentar pelo medo de não nos sairmos bem; vale sempre a pena tentar, mesmo que o resultado seja muito fraco, pois é errando que aprendemos.

“Pecado” em hebraico é falhar o alvo – A noção de pecado, tão central no cristianismo, vista como um ato horrendo que nos faz impuros e se cola à nossa consciência escrupulosa que não cessa de nos acusar e perseguir e que finalmente nos leva ao inferno, ou seja, ao eterno castigo, é alheia ao judaísmo. Em hebraico pecado é “chait” e não significa nada do que acabámos de dizer, apenas significa falhar a diana, falhar ou errar o alvo.

O livro dos Juízes, (20,16) fala de atiradores de funda que podiam acertar num cabelo sem falhar o alvo. A palavra pecado pode ser reenquadrada fora do paradigma moralista de pecado/virtude, mau/bom. No livro dos Reis 1, 20-21 Bathsheba visita o seu marido David já moribundo e diz-lhe que “se Salomão não for o seu sucessor, ela e o seu filho Salomão serão vistos e tratados como” chataim”, pecadores. Este conceito de pecado, aliás o original, não tem conotações moralistas pelo que se enquadra perfeitamente na CNV.

“Errare humanum est”, como errar faz parte da natureza humana, Jesus também errou; de facto, pensava que o fim do mundo estava muito perto; o mesmo pensava S. Paulo, mas equivocaram-se os dois e S. Pedro teve que dizer, num dos últimos escritos do NT, que mil anos para Deus são como um dia e um dia como mil anos. Cristo tarda em vir para dar uma hipótese a todos de se converterem. (2 Pedro 3, 8-9)

Enquadrando-se perfeitamente com a CNV, “pecado” significa então que erramos ou nos enganamos na nossa tentativa de satisfazer as nossas necessidades. O pecado é um erro de estratégia: o que pensávamos que as satisfazia não as satisfez; ou quando satisfizemos as nossas necessidades à custa dos outros, ou quando satisfizemos as necessidades dos outros à custa das nossas, ou até quando satisfizemos algumas das nossas necessidades à custa de outras nossas necessidades.

Ao definir o pecado desta forma passamos de uma moral heterónima para uma moral autónoma; não tenho que me medir em relação a um ideal de perfeição abstrato e fora de mim, mas tenho de procurar o melhor de mim mesmo. Desta forma, não dependo de uma autoridade externa para saber o que é bom ou o que é mau, mas somente da minha consciência moral que, bem formada e informada, me dita a cada momento o que devo ou não devo fazer.

A moral dos senhores vs a moral dos escravos
É pelas nossas virtudes que somos mais bem punidosNietzsche

Nos seus livros “Genealogia da moral” e “Para além do bem e do mal” Friedrich Nietzsche demonstra que a moral não é inata nem imutável, nem se deduz da natureza humana, mas é produto da história. Na pré-história, quando a linha entre o humano e o animal ainda não estava bem definida, alguns homens sobrepuseram-se aos outros subjugando-os pela lei do mais forte e mais capacitado que vigora entre os animais. Os vitoriosos são os senhores e os derrotados são os escravos.

Os senhores, ao terem êxito, julgam a realidade por si mesmos e pelos seus atos, em virtude da situação privilegiada de que gozam após a sua vitória sobre os escravos. O forte é criador de valores por isso para os senhores “bom” é o modo como sou e como ajo; é a violência, a guerra, a aventura, o risco, o poder, o prazer, a crueldade, a força física, a ação, a liberdade, o poder a autonomia e independência: foram estes valores que os colocaram numa situação privilegiada em relação aos outros.

Os senhores, os que podem, querem e mandam, podem exteriorizar todos os seus instintos, ou seja, podem atuar com base neles sem nenhuma limitação; podem matar e esfolar, roubar, violar, ter as mulheres que querem, banquetear-se, embebedar-se que ninguém os chama à razão pois eles são os aristocratas, os que mandam, estão a cima da lei pois são eles que a ditam. Por exemplo, ainda nos dias de hoje, o patrão tem mais liberdade para expressar os seus instintos que o empregado.

Quando os guerreiros, senhores ou aristocratas, lutam entre si pela hegemonia ou poder absoluto, os que ganham são chamados nobres de sangue azul, enquanto que os derrotados, não sendo da plebe ou escravos, encontram-se agora também submetidos aos senhores de mais alto estatuto. Ao ser-lhes negada, como outrora eles mesmos tinham negado aos escravos, a liberdade para expressarem os seus instintos, estes vêem-se obrigados a reprimi-los, interiorizá-los, ou seja, a voltá-los contra si mesmos.

Os instintos inibidos e reprimidos cavam uma caverna no íntimo do homem; nasce assim o mundo interior, o pensamento, a inteligência, a vida interior, a espiritualidade, Deus e é claro a religião e a casta sacerdotal. O instinto de crueldade, por exemplo, voltado contra o próprio indivíduo, transforma-se na consciência moral escrupulosa que o persegue e que nunca está contente com o desempenho uma vez que o ideal, por sua própria definição, é inalcançável.

Temos agora três classes, a nobreza, o clero e o povo. Como guerreiros derrotados, os sacerdotes ao não poderem exteriorizar os seus instintos como antes faziam, invertem a moral dos senhores: surgem os pensadores, a casta dos hábitos interiores, dos cientistas, dos filósofos e matemáticos que, tal como os sacerdotes, procuram agora dominar pela mente porque não conseguiram fazê-lo pela força física e das armas. São, por isso, pacifistas, contra a guerra ou qualquer forma de violência, são contemplativos em vez de ativos, pensadores em vez de atores.

Os sacerdotes ressentidos pela derrota e com um grande desejo de se vingar, ao não poderem defrontar e vencer os nobres fisicamente, tecem um plano para os vencer sorrateira e mentalmente. Tal como a raposa que, não podendo chegar às uvas, as declara verdes, assim fazem os sacerdotes à moral dos senhores.

Nasce assim a moral dos escravos, que não conseguiram impor-se no mundo real e inventam o mundo ideal ascético, o espírito, Deus; refugiam-se em mosteiros e negam a vida real que afirmam ser um vale de lágrimas, para afirmar a vida no além onde voltarão a ser felizes. Negam a terra para afirmar o céu, ou seja, transferem o valor da vida para fora da vida, o real para o abstrato. Surge Sócrates com os seus valores, o mundo das ideias de Platão.

Em nome de Deus e na outra vida abdicam desta, dos seus instintos sexuais, do poder, do prazer de tudo o que antes possuíam quando eram senhores. Valores agora são o pacifismo, a humildade, a obediência, a pobreza, a prudência, o jejum, a abstinência, a igualdade, a fraternidade, a justiça.

Sócrates e Platão, toda a filosofia grega e a ciência encaixam-se no quadro da moral dos escravos, pois encontram a sua força não nos braços, mas na mente; todo o povo judeu encaixa neste quadro; de facto, começam a sua história sendo escravos no Egipto, derrotando posteriormente os seus mestres não pela força das armas, mas pela inteligência.

Eles mesmos assim interpretam a sua saga pela forma como contam a história de Jacob. Astutamente, com a ajuda de sua mãe, engana seu pai Isaac e derrota o seu irmão mais velho Esaú que era muito mais forte fisicamente, roubando-lhe o direito de primogenitura. Jacob, cujo outro nome é Israel gera 12 filhos que são as cabeças das 12 tribos de Israel.

Nietzsche chama aos judeus um povo sacerdotal e a moral dos escravos é de facto a moral do judaico- cristianismo que, pouco a pouco, se impôs. De facto, tanto o judaísmo como o cristianismo nasceram na escravidão: os judeus foram escravos no Egipto, os cristãos foram durante cinco séculos a classe mais pobre perseguida pelo império romano, acabando por prevalecer sobre este.

A moral dos senhores é autónoma, os valores são definidos a partir da experiência do indivíduo; a moral dos fracos ou dos escravos é heterónima, os valores são normas que surgem a partir de fora do indivíduo, a moral é ideológica: “Deus disse, a Bíblia manda”.

A moral dos senhores é vital, baseada no corpo e nos seus apetites e necessidades, a moral dos escravos é abstrata, baseada em valores que negam e sacrificam a vida real.

A moral dos senhores é naturista, avalia o desempenho na medida em que satisfaz ou não os instintos e as necessidades; a moral dos escravos, nega a necessidade, coloca-lhe a etiqueta de pecaminosa, feia, impura, coloca etiquetas, criminaliza em nome de uma ideologia e ideal inalcançável.

Ética naturalista ou regresso ao Jardim do Éden
Vi, então, um novo céu e uma nova terra, pois o primeiro céu e a primeira terra tinham desaparecido e o mar (símbolo do mal) já não existia. Apocalipse 21, 1

“Somewhere beyond right and wrong, there is a garden. I will meet you there.” (Algures para lá do certo e do errado, existe um jardim. Encontrar-me-ei lá contigo.) Jalaluddin Mevlana Rumi

Rumi é um poeta persa e místico sufi que viveu no século XIII; para ele o amor universal é a pedra angular da vida espiritual e a solução do binómio bem/mal. - Aquilo que se faz por amor está sempre além do bem e do mal, pois o amor supera a dicotomia entre o bem e o mal.

It doesn’t matter who is right or wrong. It only matters that you are not hurt. And that we both can benefit. All true benefits are mutual.” (Pouco importa quem está certo ou errado. Apenas importa que não sintas mágoa. E que ambos possamos colher os benefícios. Todos os benefícios verdadeiros são mútuos. Donald Walsh

A dicotomia mal/bem não existe entre os animais e por isso eles não são violentos, unicamente procuram satisfazer as suas necessidades. As diferenças entre os humanos e os animais são apenas duas: os humanos têm mais necessidades que os animais e têm o uso da razão, que lhes dá mais recursos para satisfazer as necessidades de todos, não as de uns em detrimento das necessidades dos outros. A função da dicotomia bem/mal só pode ser a de uns, os que se designam como bons, dominarem aqueles a quem designam como maus.

Só temos que tirar conclusões e parafrasear o que já foi dito. Entendemos que a CNV não tem ética na medida em que se abstém de julgar as pessoas e os seus atos; situa-se, neste sentido, para além do bem e do mal na medida em que o seu objetivo não é avaliar quem é bom e quem é mau, quem procedeu bem e quem procedeu mal, mas sim verificar se as necessidades humanas foram ou não satisfeitas.

Neste sentido é naturista pois é terra, a terra que guarda semelhanças com a moral dos senhores; não é uma ideia abstrata, artificial e inalcançável de valores, ao serviço de uma religião ou de uma ideologia. Não julga as pessoas, nem lhes coloca uma etiqueta, ao contrário da moral dos escravos, cujos valores surgem de fora da vida, sendo, portanto, uma moral heterónima.

A moral da CNV é autónoma porque confere valor às nossas necessidades, das mais básicas e físicas até às mais altas e espirituais. É moral o que satisfaz as minhas e as necessidades dos outros e imoral o que nem satisfaz umas nem outras ou apenas satisfaz umas.

A ética da CNV difere, porém da moral dos senhores e aproxima-se da moral dos escravos ao considerar a satisfação das necessidades dos outros tão importante como a satisfação das minhas; e mais: as necessidades dos outros também são necessidades minhas. A CNV entende que todos ganham quando um ganha e todos perdem quando um perde; ou ganham todos ou perdem todos; ninguém pode ser feliz à custa da infelicidade dos outros.

Assemelhando-se à moral dos senhores, a ética da CNV é autónoma, natural e naturista, porque os seus valores brotam da natureza do homem:
  • BOA - é a estratégia ou a ação que vai ao encontro das minhas necessidades, bem como das necessidades dos outros.
  • - é a estratégia ou a ação que só vai ao encontro das minhas necessidades em detrimento das necessidades dos outros ou, vice-versa, vai ao encontro das necessidades dos outros em detrimento das minhas.
Assemelhando-se à moral dos escravos, a ética atual, a ética do sistema de dominação é heterónima, artificial e arbitrária, porque os seus valores brotam de uma ideologia que em grande medida desconsidera a natureza humana:
  • BOA - é a estratégia ou a ação que espelha e é subserviente à ideologia dominante e ao que arbitrária e autocraticamente os poderes instituídos comandam, mesmo que vá contra a natureza humana, desconsidere a liberdade da pessoa, as suas necessidades e valores.
  •  – é a estratégia ou a ação que se rebela contra a ideologia dominante e os seus valores artificialmente impostos. Aquele que tenta ser fiel mesmo e busca a emancipação é visto como uma ovelha negra e é rotulado como egoísta pelos poderes instituídos. Se as suas ações chegassem a constituir uma ameaça aos poderes instituídos, seria declarado “persona non grata” e depois ostracizado ou eliminado.

Isto pode parecer muito simplista e de facto é; a simplificação é propositada para facilitar o entendimento. Quanto a como as coisas realmente são, sabemos que a ética que governa o nosso mundo moderno não corresponde 100% à moral dos escravos, adotada pelo sistema de dominação, nem à moralidade dos mestres, mas a uma combinação de ambas. Isto faz com que a ética atual, não estando já totalmente contra a natureza humana, seja ainda acentuadamente ideológica.

A CNV é uma volta ao Jardim do Éden, à inocência primogénita, à natureza antes do aparecimento da avaliação moral dos atos, num tempo em que a nossa única preocupação era satisfazer as nossas necessidades e as dos outros. Jesus dizia que se não formos como crianças não entraremos no Reino dos Céus; a criança observa e não julga, situa-se para além do bem e do mal ou fora deste binómio; tem consciência das suas necessidades e naturalmente solicita a sua satisfação. A ética não violenta é, portanto, uma ética naturalista, a sua única preocupação é que todos satisfaçam as suas necessidades.

A moral da CNV baseia-se na satisfação ou não das necessidades e valores de todos. Como assenta radicalmente no mandamento do amor ao próximo como a mim mesmo, e como ninguém pode ser feliz sozinho ou à custa dos outros, em CNV as necessidades dos outros são também minhas: não há vitoriosos nem derrotados, não há ganhadores nem perdedores, ou ganhamos todos ou perdemos todos.

Contrária à moral dos escravos, por ser uma ideia artificial e mais semelhante à moral dos senhores uma vez que se baseia nas necessidades e valores humanos que são universais, a moral da comunicação não violenta é uma moral natural, naturalista ou ecológica. É, portanto, bom o que satisfaz as minhas necessidades e as dos outros e mau o que não satisfaz as minhas necessidades nem as dos outros ou o que só satisfaz as minhas, ou o que só satisfaz as dos outros.

A falácia da dicotomia do Bem contraposto ao Mal
Pondo-se a caminho, correu para ele um homem, o qual se ajoelhou diante dele e lhe perguntou: “Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” E Jesus lhe disse: “Por que me chamas bom? Ninguém há bom senão um, que é Deus.Marcos 10, 17-18

Quando pensamos sobre as implicações morais ou éticas do bem e do mal, na prática, na ética real, que é ainda em grande medida a ética do sistema de dominação, chegamos à conclusão de que tal dicotomia é fictícia, artificial, ideológica e arbitrária. Se existe, é porque serve os interesses de alguém; serve aqueles que, farisaicamente, se consideram bons designando os outros como maus.
Jesus recusou-se a ser chamado bom pelo jovem rico.

Durante a sua vida e em todos os casos que lhe foram apresentados, sempre se recusou a desdenhar ou condenar aqueles considerados maus ou pecadores pelo sistema de dominação. A este respeito, é muito icónica a sua oposição à monda das chamadas ervas daninhas que crescem lado a lado com o trigo (Mateus 13:24-30), também aqui, tal como no texto anterior, transfere para Deus a prerrogativa do bem e do mal, pois só Deus pode diferenciar um do outro. Qualquer tentativa de o fazer por parte dos seres humanos, é ideológica e serve sempre um propósito oculto ou seja uma ideologia.

Por outro lado, acerca do mal, nunca ninguém fez o mal por mal; aliás em português é típico que quando alguém faz algo de mal diga logo, “não foi por mal”. Todo os que na nossa perspetiva fizeram coisas más, na sua perspetiva, estavam a fazer o bem.

Nenhum suicida islamista acha que está a dar sua vida por uma coisa má. No momento da redação deste texto, um marido e uma esposa usaram os seus quatro filhos numa sequência de ataques suicidas mortais em três igrejas na cidade de Surabaia, na Indonésia. Ao sacrificarem as suas vidas, segundo eles por um bem maior, aquela família de 6 pessoas pensava certamente que estava a fazer o bem.

Ética das necessidades
A originalidade da CNV é a promoção do conceito de “necessidade” ao estatuto de valor. O sistema de dominação considera a “necessidade” como algo negativo. Não deveríamos ter necessidades, mas se as temos não devemos ceder ao seu poder sobre nós. Pelo contrário, é salutar aquele que consegue abdicar delas, sacrificá-las por altos valores e ideais no altar do sistema de dominação.

Um agricultor alemão na cidade de Schilda tinha um bom cavalo que trabalhava no campo. A sua única queixa contra o animal era que ele consumia muita aveia; gradualmente, foi-lhe cortando a ração, na esperança de chegar ao dia em que o animal trabalhasse sem comer. Esse dia de facto chegou, o animal trabalhou o dia inteiro sem ter comido, só que no dia seguinte de manhã foi encontrado morto.

Houve um tempo em que o ato sexual era visto com algo sujo, feio e pecaminoso; só era visto como um mal menor quando era realizado dentro de um matrimónio com a única finalidade de procriar. Mas mesmo nesse caso, os casais cristãos eram aconselhados a não desfrutar do prazer do sexo e a abster-se por completo de relações sexuais durante a Quaresma. De resto, era visto como um “remedium concupiscência” paliativo para a voluptuosidade, não como um ato de amor.

Em CNV necessidades e valores são usados indistintamente como sinónimos; as necessidades são valores e os valores são necessidades. Para o sistema de dominação, satisfazer as próprias necessidades é ser egoísta; para a CNV, é simplesmente ser fiel a si mesmo. Em CNV só as necessidades são valores e os valores que não são atribuíveis a uma necessidade não são valores de modo algum; porque se opõem à natureza humana são instrumentos ideológicos do sistema de dominação.

A moral do amor
Precisamos ter em mente que em CNV o amor não é um sentimento, embora existam sentimentos ligados a ele, mas sim uma necessidade. Todas as necessidades têm, de facto, sentimentos ligados a elas, pois são os sentimentos que nos alertam e dizem se a necessidade está a ser satisfeita ou não. O amor como necessidade não parece, à primeira vista, estar ligado com a moral, mas realmente está.

Quando julgamos não amamos, quando amamos não julgamos; o amor universal sobretudo o amor aos inimigos supera o pensamento dualista do bem contraposto ao mal, o que nos leva para a eternidade que é Deus que faz chover sobre justos e injustos e ama a todos incondicionalmente. Somos chamados a ser como Ele.

Diz-se também que o amor é cego; que os amantes tendem a não ver os defeitos e deficiências um do outro e que se abstêm naturalmente de se julgar um ao outro. E também parece que quando o amor desaparece só se vêm defeitos e deficiências. Isto leva-nos a concluir que só o amor nos pode livrar de ser hipercríticos com os outros, levando-nos de volta ao Jardim do Éden.

Quando os amantes estão juntos perdem a noção do tempo e do espaço e experimentam virtualmente a eternidade, provando que ela existe. Porque Deus é amor, só o amor te pode conduzir à eternidade real. Só o amor pode trazer o céu à terra e fazer esta voltar ao Jardim do Éden. O próprio Nietzsche diz: “Aquilo que se faz por amor está sempre para além do bem e do mal”
Pe. Jorge Amaro, IMC

15 de novembro de 2018

CNV - Gestão da ira & Resolução de conflitos

Sem comentários:
A ira é uma expressão suicida de uma necessidade  insatisfeita M. Rosenberg 

Se vos irardes, não pequeis; que o sol não se ponha sobre o vosso ressentimento, (…) Toda a espécie de azedume, raiva, ira, gritaria e injúria desapareça de vós, juntamente com toda a maldade. Sede, antes, bondosos uns para com os outros, compassivos; perdoai-vos mutuamente, como também Deus vos perdoou em Cristo. Efésios 4, 26, 31-32

São Paulo reconhece, no versículo 26, que a ira faz parte da nossa natureza, que há muitas situações existenciais no nosso dia a dia que a podem desencadear; mas aconselha-nos logo a seguir no mesmo versículo a não lhe dar espaço, ou seja, a não fazer nada motivados por ela. Não devemos atuar exteriormente com base na nossa ira porque a ira é um sentimento e, como todos os sentimentos ou emoções, aponta para uma necessidade insatisfeita.

A ira não é então mais que um alarme que dispara no nosso sistema e que nos pede um “intervalo” para parar, respirar fundo e fazer um exercício de introspeção que tem como objetivo descobrir a sua causa em nós e não nos outros. Desta forma, evitamos o ressentimento que naturalmente leva ao azedume nas relações, à raiva, gritaria e injúria, tal como adverte S. Paulo.

Quando a ira é desencadeada em nós, são várias as respostas possíveis. Responder agressivamente no âmbito do “olho por olho dente por dente”; ser passivo / passivo, ou seja, voltar a agressividade contra nós próprios reprimindo assim a ira; ser passivo / agressivo, procurar a vingança de uma forma sorrateira do tipo “dar uma bofetada e esconder a mão”; ser assertivo defendendo-nos, mas sem atacar o outro.

Distinguir entre o que desencadeia a ira e o que a causa
A linguagem não violenta tem uma nova abordagem à ira: não se reprime, por, ser má, nem se descarrega, dando murros em almofadas, pois isso só  faz com que aumente e, eventualmente, um ou outro murro pode acertar naquela que julgamos ser a causa da nossa ira.

O primeiro passo é ilibar o outro de toda e qualquer responsabilidade pela minha ira; ou seja, não dizer “irritas-me” porque nunca ficamos irritados pelo que o outro faz ou diz; o outro pode desencadear a nossa ira, mas não a causa. Num mundo violento, onde a culpa é uma tática de controlo, manipulação e coação, interessa confundir o estímulo dos sentimentos com a causa dos mesmos: “fazes-nos sofrer, ao teu pai e a mim, quando tiras más notas”. A mesma tática é usada entre namorados: “desiludiste-me ao não te lembrares do meu aniversário”.

Enganamo-nos a nós mesmos quando pensamos que os nossos sentimentos resultam do que os outros dizem ou fazem. Em vez de buscar em nós mesmos a causa da nossa ira ou de quaisquer outros sentimentos ou emoções, culpamos os outros, procuramos um bode expiatório e frequentemente descarregamos sobre ele a nossa ira em forma de vingança ou punição. A ira está para a sua causa como o fumo está para o fogo - onde há fumo, há fogo, onde há ira há uma necessidade nossa que não está a ser satisfeita. É esta necessidade que causa a ira e não o que o outro disse ou fez.

Rosenberg dá como exemplo o caso de um prisioneiro numa prisão sueca, a quem perguntam o que é que as autoridades da prisão tinham feito para provocar a sua ira; ele responde, “há já três semanas que fiz uma petição e eles ainda não responderam”. O prisioneiro fez uma pura observação sem misturar nenhuma avaliação, ou seja, sem qualificar o comportamento das autoridades prisionais; porém, o estímulo parece coincidir com a causa, ou seja, ele culpa as autoridades pela sua ira.

Identificar a causa da nossa ira na forma como julgamos o comportamento do outro
Ao voltar-se para si mesmo para encontrar a razão ou causa da ira, o prisioneiro descobriu que, de facto, o que sentia era medo de sair da prisão sem ter um curso, uma profissão para se poder sustentar. O que causa a nossa ira não é o que os outros dizem ou fazem, mas a nossa interpretação e avaliação negativa do que dizem e fazem, assim como o que nós dizemos a nós mesmos.

O prisioneiro descobriu que estava zangado por achar que não era justa a forma como estava a ser tratado, não era assim que se tratavam seres humanos. Sentimos ira porque interpretamos e julgamos como, mau, injusto, inumano, o comportamento do que desencadeia a nossa ira. O comportamento desencadeia a ira, mas o que a causa é a minha interpretação desse mesmo comportamento e o veredito que atribuo às pessoas, julgando-as egoístas, injustas, cruéis, etc….

A raiva resulta de concentrarmos a nossa atenção no que a outra pessoa "deve" ou "não deve" fazer e julgá-la como "errada" ou "ruim", “egoísta”, etc. A ira mantém-nos focados sobre o que não gostamos, em vez de nos ajudar a ligarmo-nos às nossas necessidades. Mudando o foco da nossa atenção, perguntando-nos pelas necessidades que ficam insatisfeitas enquanto acusamos os outros, o sentimento da raiva desaparece ou é substituído por sentimentos que servem a vida, como o medo, a desilusão a tristeza ou a dor.

Substituir o julgamento pela necessidade insatisfeita que lhe subjaz
As sentenças que pronunciamos ao julgar aquele cujo comportamento desencadeou a nossa ira são expressões alienadas e trágicas de necessidades nossas que se encontram insatisfeitas. Em vez de olhar para dentro de nós para nos ligarmos ao que necessitamos, saímos para fora de nós e acusamos e culpamos os outros pela insatisfação das nossas necessidades.

“Não é com vinagre que se caçam moscas” e esta não é certamente a melhor forma de as satisfazer. As acusações não provocam a cooperação dos outros para a satisfação das nossas necessidades, pelo contrário provocam defesa e retaliação. Mesmo que provocassem e conseguíssemos a sua cooperação por medo, vergonha ou culpa, mais tarde ou mais cedo pagaríamos esta forma de cooperação forçada.

Voltando ao prisioneiro sueco, Rosenberg perguntou-lhe que necessidades insatisfeitas estavam por detrás das acusações feitas às autoridades da prisão? Não foi fácil a resposta, pois estamos mais habituados a reagir e julgar os outros que a fazer exercícios de introspeção e ligação com o que verdadeiramente necessitamos; por fim, o prisioneiro disse “Bom, a minha necessidade é ser capaz de sobreviver conseguindo um emprego depois de sair da prisão; o pedido que eu fiz às autoridades era aprender um ofício durante o tempo de reclusão.

Perguntou Rosenberg, “Como te sentes agora?”; “com medo”, respondeu o prisioneiro. Ao ligar-se com a necessidade que provocava a raiva contra as autoridades, esta dissolveu-se por si mesma e deixou de se fazer sentir. 

Reunindo-se com as autoridades da prisão depois deste trabalho de introspeção, depois de descobrir as suas necessidades, já não necessitou de os acusar, pelo que ao referir as suas necessidades e o seu medo, provavelmente encontrou a satisfação do seu pedido.

Se hipoteticamente, enquanto esperava a resposta das autoridades, o prisioneiro tivesse acesso à Internet e conseguisse inscrever-se num curso, ao ter encontrado, por outra via, a satisfação da sua necessidade, deixaria eventualmente de sentir raiva contra as autoridades prisionais. Isto prova uma vez mais que o que provoca a ira não é o que os outros dizem ou fazem, mas a nossa interpretação do que eles dizem ou fazem; a génese, raiz ou causa da ira porém está numa necessidade insatisfeita.

Ligarmo-nos com as nossas necessidades é muito difícil na nossa cultura porque fomos educados para não as ter, ou para não estarmos cientes de que as temos, e assim poder colocar-nos dócil e subservientemente ao serviço da pátria, do rei, da bandeira, do patrão, dos filhos, dos alunos, da instituição, da empresa…. Reconhecer e expressar necessidades é associado com egoísmo.

Fazer o ponto da situação na partilha do processo
Por fim partilhamos com a outra pessoa o processo que seguimos no nosso íntimo:

1. Começamos por revelar o que desencadeou a nossa ira, o que a pessoa fez ou disse que estimulou a minha ira. Às vezes é bom escrever para vermos tudo com maior clareza.

2. Expressamos a ira, tomando consciência de que estamos irados e que esta ira resulta não do que o outro faz ou diz, mas sim do que nós dizemos a nós mesmos como interpretação do que o outro faz ou diz. Perguntamo-nos o que é que dissemos a nós mesmos que causou a nossa ira?

É o julgamento que fazemos do que o outro disse ou fez, qualificando-o como errado, cruel, insensível, preguiçoso, injusto, etc. que provoca a nossa ira. Nós e só nós somos os criadores da nossa ira quando julgamos o comportamento dos outros como errado.

3. Procuramos a necessidade que não estava a ser satisfeita e que estava escondida atrás da forma como julgámos a pessoa que desencadeou a nossa ira. Assim sendo, traduzimos ou substituímos a apreciação que fizemos da outra pessoa pela nossa necessidade não satisfeita.

Evitamos dizer “estou zangado porque tu…” (fizeste… ou disseste… ou és…) e dizemos, “estou zangado, porque eu necessito… (revelo a necessidade insatisfeita).

No exato momento em que nos ligamos a essa necessidade, reconhecendo que é ela a causa da nossa ira, deixamos de sentir a ira, esta é substituída por um outro sentimento mais positivo e fácil de lidar. No caso do prisioneiro foi substituída pelo medo de não ter um trabalho depois de sair da prisão. Também é importante ligarmo-nos aos sentimentos e necessidades da pessoa que desencadeou a nossa ira.

4. Agora estamos prontos e capacitados para fazer um pedido à pessoa que me pode ajudar na satisfação da minha necessidade.

No caso do prisioneiro, seria assim: “há três semanas, fiz um pedido para o qual ainda não obtive resposta; estou com medo, pois tenho necessidade de ganhar a vida quando sair desta prisão; sinto que sem tirar um curso ou aprender um ofício, vai ser difícil sobreviver lá fora”.

A tristeza facilita a introspeção que nos impulsiona a encontrar a satisfação das nossas necessidades. Ao contrário, a ira atira-nos para fora de nós e, num primeiro momento, leva-nos a culpar os outros pela insatisfação das nossas necessidades. A ira, que resulta da forma punitiva como julgamos os outros, distrai-nos de tal forma que ignoramos por completo a necessidade ou necessidades que são a causa dessa ira. - Neste sentido, pode servir como chamada de atenção de que estamos completamente desligados das nossas necessidades - só aplacaremos a ira se encontrarmos dentro de nós a sua causa e não nos outros.

RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
Felizes os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus. Mateus 5, 9

Todos conhecemos os efeitos nocivos dos conflitos mal resolvidos: violência destrutiva, ódio, vingança, ressentimento, ansiedade, insónia, depressão, medo. Por isso, temos uma tendência inata a evitar os conflitos e a fugir deles como o diabo da cruz. Porém, a arte de viver conjuntamente não é a arte de evitar os conflitos, mas sim a arte de os experimentar e vivenciar positivamente para todos os envolvidos. Tal como a ira que não deve ser reprimida, o conflito deve ser vivenciado porque é natural, normal e neutro.

O conflito é natural
Deus não nos criou iguais, mas diferentes: somos diferentes em género, dentro do mesmo género em preferência sexual, idade, fisionomia, personalidade e carácter, gostos, escolhas, valores. A convergência destas divergências, não é fácil nem naturalmente harmoniosa.

Muitas arestas devem ser limadas para que a divergência natural resulte em convergência harmoniosa e, eventualmente, em complementaridade. A unidade de facto acontece quando olhamos para as nossas diferenças como uma mais valia e não como um defeito, quando descobrimos que nos complementamos e que essa complementaridade só é possível na aceitação das diferenças entre nós.

O conflito é normal
O conflito é inerente ao ser humano, tanto no plano individual com os conflitos internos, como no plano social como conflitos externos; por isso, é também transversal a toda a atividade humana -onde quer que a pessoa esteja há conflitos, no lar, na fábrica, na empresa, na escola, no hospital, na Igreja, em todas as instituições.

Como a nossa cultura nos ensina que o conflito é mau, não nos capacita para o resolver de forma a procurarmos a satisfação das necessidades de todos. Pelo contrário, só nos oferece as três formas clássicas de reação do cérebro reptílico: luta, submete-te ou foge e evita o conflito. O confronto é normal. O mau, funcionamento da sociedade ou de qualquer instituição vem da incapacidade de gerir os confrontos.

O conflito é neutro
Em si mesmo, o conflito não é bom nem é mau, não é adequado nem inadequado, não é certo nem errado. Tudo depende da forma como lidamos com ele. Tal como no caso da ira, no início, o conflito faz soar um alarme, é um sintoma de divergência, de uma crise que, como todas as crises bem geridas, levam a um maior crescimento.

Quando o conflito é mal gerido ou evitado, por medo, serve para manter o “status quo” e ainda lhe acrescenta um clima de insatisfação e uma violência contínua que envenena e corrói as relações, levando eventualmente a uma perda maior para todos os envolvidos se, por uma razão ou por outra, o conflito deflagrar efetivamente.

Quando a gestão acontece depois de muito tempo de guerra fria, o problema assumiu proporções dificilmente difíceis de gerir até porque, nessa altura a guerra fria já vai demasiado longa e já não há vontade de resolver o conflito.

O teu inimigo esconde-se de ti porque te odeia, tu escondes-te dele porque o conheces – diz um provérbio africano. Numa comunidade religiosa, empresa ou instituição, cujos membros vivem em clima de guerra fria, vemos como estes se movem à volta uns dos outros, como peixes num aquário e, quando acidentalmente se tocam, fazem faísca e repelem-se mutuamente.

Algumas causas de conflitos
•    Não ouvir a opinião do outro porque não gostamos dele
•    Querer que todos sejam iguais
•    Não aceitar o outro como ele é
•    Inferir motivos por trás de comportamentos
•    Bloqueio de pessoas em papéis atribuídos
•    Preconceitos, encaixar o outro em papéis atribuídos, impedindo-o de crescer e mudar
•    Racismo, sexismo, chauvinismo
•    Rivalidade, inveja, autocracia
•    Crenças religiosas
•    Narcisismo e exagero das pequenas diferenças, ignorando o que temos em comum
•    Fixação nos pequenos detalhes, ignorando as grandes questões
•    Crítica destrutiva constante
•    Imposição de decisões a pessoas que não participaram na sua tomada
•    Medo de enfrentar e confrontar alguém
•    Negação e fuga de situações conflituosas
•    Usar o silêncio como arma para controlar os outros
•    Manipulação, insensibilidade
•    Falta de reconciliação ou reconciliação prematura sem resolver a questão
•    Ser tratado ou tratar os outros como crianças

Utilização das quatro etapas da CNV para resolver conflitos
Expressar a nossa vulnerabilidade, partilhando os nossos sentimentos, pode ajudar a resolver um conflito Marshall Rosenberg

Também na resolução de conflitos, como acontece na ira e noutros assuntos individuais e sociais, a CNV é como a varinha de condão que transforma os instrumentos de guerra em instrumentos de paz, a pedra filosofal que transforma em ouro tudo o que toca, a melhor matriz, o melhor paradigma ou modelo para resolver satisfatoriamente os conflitos que resultam e surgem da nossa vida em comum.

Ante um conflito ou sempre que nos encontramos no meio de um conflito nas nossas vidas, ou que presenciamos um, dos quatro passos da comunicação não violenta contribuem com uma clarividência que nos ajudará a comunicar com os outros compassivamente.

Observar e descrever objetivamente o que está a acontecer ou aconteceu; descrever os factos que compõem a situação que nos perturba, sem julgar, avaliar ou comparar com conflitos similares ou passados.

Ter consciência dos sentimentos e emoções que afloram em mim, tanto no meu corpo como no meu espírito; identificá-los e dar-lhes um nome, evitando palavras que contêm uma crítica velada aos outros e que me atiram para fora de mim e do meu sentir, como vítima, abandonado, rejeitado, incompreendido; estes não são sentimentos, mas sim palavras que avaliam a ação do outro. Ao nos responsabilizarmos pelos nossos sentimentos, evitamos lidar com a situação conflituosa como vítimas.

Ter consciência das minhas necessidades insatisfeitas e não dar por certo que os outros sabem do que precisamos, quando nem nós o sabemos. Esta forma de pensar provém da nossa infância, quando os nossos pais e educadores adivinhavam o que nos fazia falta sem que nós lho disséssemos ou mesmo sem que nós próprios tivéssemos consciência das nossas necessidades. Como adultos, é importante sermos capazes de identificar as nossas necessidades e fazer pedidos claros e diretos para as satisfazer. Assim, evitam-se os mal-entendidos e aumentam as possibilidades de que as nossas necessidades sejam verdadeiramente satisfeitas.

Quais são os nossos pedidos? Depois de identificar as nossas necessidades, o passo seguinte é fazer um pedido específico, viável, concreto e realista. Para estes pedidos, todas as respostas são “sim” e são positivas, mesmo quando há um “não” que só aparentemente é negativo.

Não devemos estar agarrados às nossas expectativas: a melhor resposta não é a que espero receber, mas a que o outro me dá. Todos precisam de se sentir livres para pedir o que precisam, assim como para dizer sim ou não às solicitações sem serem julgados, culpados ou criticados. Ao expressarmos as nossas necessidades, permanecendo abertos aos resultados, as relações tornam-se mais autênticas e satisfatórias. Como já sabemos, o “não” do outro corresponde a um “sim” às suas necessidades imediatas (que em CNV são também nossas) e a um adiamento das nossas.

Exemplo
Rosenberg fala de uma conferência que deu num campo de refugiados palestinianos; no exato momento em que foi apresentado como sendo americano ouviu-se uma voz estridente, “assassino”. Eis uma situação conflituosa que poderia resultar no insucesso da conferência e dificultar a sua segurança pessoal. Aplicando a CNV, eis o diálogo que se seguiu:

- O senhor está zangado porque gostaria que o meu governo usasse os seus recursos de forma diferente? (Não sabia se meu palpite estava certo, mas o que foi fundamental foi o meu esforço sincero para me ligar ao sentimento do meu interlocutor).
- É claro que estou zangado! O senhor acha que precisamos de gás lacrimogéneo? O que precisamos é de esgotos, casas, escolas, hospitais e uma pátria.
- Ou seja, está furioso porque em vez de gás lacrimogéneo, o senhor gostaria de ter do meu país um apoio para a melhoria das vossas condições de vida e para a independência política?

O diálogo continuou por mais tempo e Rosenberg pôs de lado os insultos e a linguagem dura para perscrutar os sentimentos e necessidades do palestiniano, ligando-se a elas empaticamente, sem concordar, discordar ou defender-se das suas afirmações. Rosenberg refere que, quando o homem se sentiu compreendido, conseguiu continuar a sua conferência, que terminou uma hora mais tarde com um convite para um jantar de Ramadão por parte do homem que lhe tinha chamado assassino.

Concluindo, para além de serem uma expressão dramática de necessidades insatisfeitas, tanto a ira como o conflito não resultam tanto daquilo que os outros dizem ou fazem, mas mais da forma como eu os julgo pelo que dizem ou fazem.
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de novembro de 2018

CNV - Educar sem prémios nem castigos

Sem comentários:
Qual de vós, tendo um servo a lavrar ou a apascentar gado, lhe dirá, quando ele regressar do campo: “Vem cá depressa e senta-te à mesa” Não lhe dirá antes: “Prepara-me o jantar e cinge-te para me servires, enquanto eu como e bebo; depois, comerás e beberás tu”? Deve estar grato ao servo por ter feito o que lhe mandou? Assim, também vós, quando tiverdes feito tudo o que vos foi ordenado, dizei: “Somos servos inúteis; fizemos o que devíamos fazer.Lucas 17, 7-10

Prémios e castigos fazem parte da linguagem violenta, que precisa de estímulos externos para que as coisas sejam feitas. O homem novo, o homem não violento, é autónomo, a motivação para o seu agir é intrínseca, não faz o que faz por medo ao castigo, nem na ânsia de ganhar um prémio. Faz o que faz porque gosta, porque dessa forma satisfaz as suas necessidades e as necessidades dos outros no meio em que vive, contribuindo positivamente para a sua família, instituição, empresa ou sociedade em geral.

O texto bíblico acima citado confere esta ideia: Deus não fica em dívida connosco por termos feito o que era nosso dever fazer. Rosenberg repete muitas vezes, não faças nada que não seja por puro gosto de o fazer; aparentemente esta ideia parece ir contra o princípio cristão de fazer algo por alguém, de se colocar ao serviço dos outros, mas não é assim.

Tudo o que fazemos, devemos fazê-lo por gosto, porque livremente escolhemos fazê-lo. Desta forma, ninguém fica devedor do que fazemos, não somos escravos de nada nem de ninguém, nem sequer do dever, não escravizamos ninguém, ou seja, não endividamos as pessoas com o que fazemos por elas, pois não é por elas que o fazemos é por nós, porque temos gosto em contribuir para o bem-estar dos outros.

Marshall Rosenberg, o fundador da CNV, não desenvolveu muitos dos temas do âmbito da filosofia que estão na base da sua técnica linguística. Mas o tema da educação, esse sim, desenvolveu-o em dois pequenos livros, “Teaching Children Compassionately” e “Raising Children Compassionately”. Estes mesmos vamos seguir para expor a sua forma de educar as crianças em casa e na escola.

Convencido de que a CNV tinha o potencial de criar um homem novo e um mundo novo, Rosenberg não descurou o tema da educação. Fez questão de que esta nova linguagem não só fosse ensinada aos mais novos, como também constituísse a filosofia da educação, tanto em casa como na escola. Ele próprio ajudou a criar muitas escolas chamadas escolas-girafa, onde o sistema de ensino, assim como as relações entre os alunos, entre os alunos e os professores, e entre os professores e os pais, seguissem a matriz da CNV.

As limitações à coação e ao castigo
Desde criança, o ser humano sente uma necessidade inconfundível de proteger a sua autonomia e liberdade. Resiste naturalmente a fazer aquilo que os outros desejam que ele faça, mesmo que seja algo bom, pelo simples facto de que não se trata de uma escolha pessoal e livre. É certo que sempre podemos pedir às crianças que façam isto ou aquilo, mas devemos estar claramente cientes da diferença entre pedir e dar uma ordem.

As ordens são coercivas, pois fazem-se acompanhar do medo, do castigo, da culpa e da vergonha e não dão possibilidade de escolha. Pelo contrário, os pedidos concedem essa possibilidade de escolha, de tal modo que se a resposta é “Não”, o que ouvimos é um “Sim” às suas necessidades, ou seja, só aparentemente respondeu “Não” ao nosso pedido.

Rosenberg é perentório em afirmar que basta fazer duas perguntas para chegar à conclusão de que os castigos ou os prémios não funcionam e são contraproducentes como meios para motivar o comportamento de uma criança.

O que é que queres que o teu filho faça?
Em resposta a esta questão, pode concluir-se que a coação e as recompensas parecem ser um atalho para levar uma pessoa a comportar-se como queremos. Esta estratégia pode funcionar a curto prazo; porém, quando a pessoa se dá conta de que os prémios são viciantes e manipuladores e de que a coação é um atentado à sua liberdade, a estratégia deixa de funcionar.

Quais são as razões que queres que motivem o comportamento do teu filho?
Rosenberg garante que ao fazer esta pergunta damo-nos imediatamente conta de que as recompensas e punições não funcionam. Um comportamento que é imposto, motivado pelo medo, culpa, vergonha, obrigação ou o desejo de uma recompensa é uma ameaça à necessidade de autonomia, liberdade e independência da criança. As motivações extrínsecas implicam o pagamento de um preço alto, tanto por quem cumpre como por quem impõe.

Certamente preferimos que as motivações de conduta do nosso filho ou de qualquer outra pessoa sejam intrínsecas e não extrínsecas, por imposição com castigo se não cumprir ou sedução com recompensa se cumprir. Para que assim seja, precisamos de nos ligar empaticamente ao outro, de forma que ele saiba que seus sentimentos e necessidades são para nós tão importantes quanto os nossos.

Através de um diálogo empático, ambas as necessidades - as nossas e as do outro - podem ser identificadas e conhecidas. Quando isto acontece, a natureza encontra estratégias para que as necessidades de ambos sejam satisfeitas de uma forma vantajosa para ambos. Empatia leva a gratuitidade, a fazer as coisas e a dar de coração, sem necessidade de recompensas.

É também o diálogo empático que transforma uma ordem num pedido. As ordens talvez sejam úteis no exército, mas não na educação, pois não têm em consideração as necessidades do outro, a sua autonomia e liberdade de escolha.

Castigo físico
Em quase todos os países do mundo ocidental já é ilegal bater nos próprios filhos e, no entanto, a grande maioria dos pais ainda acredita no valor da punição física - abdicar dela seria abdicar da implementação dos valores que pretendem ver encarnados nos filhos.

Ou seja, para muitos pais, abdicar da punição é abdicar de educar e deixar os filhos fazer o que querem. Por isto mesmo, porque a lei os obriga a abdicar da punição e eles não entendem a educação sem punição, acabam por abdicar das duas coisas: da punição e da educação, tornando-se permissivos e condescendentes. Isto é negativo não só para as crianças, mas também para os pais e para a sociedade em geral.

Castigado com prémios
O que é válido para a punição e coação é igualmente válido para os prémios; estes são tão coercivos como os castigos, com o intuito de obter uma determinada conduta das crianças. Em ambos os casos, estamos a usar o nosso poder sobre as crianças, forçando-as a comportarem-se como nós queremos. O prémio também rouba a liberdade aos outros, pois faz com que atuem por motivos exteriores a si mesmos, o que é também um atentado contra a sua autonomia.

Alfie Kohn, no seu livro Punished by rewards, diz que educamos as crianças em casa e na escola, e que gerimos os trabalhadores de uma empresa, da mesma forma que treinamos um cão - subornando-os com incentivos: “faz isto e obterás aquilo.” Motivações extrínsecas, em forma de louvores, dinheiro, prémios são ineficazes e contraproducentes porque quem as recebe depressa se dá conta de que a razão última é a manipulação e o controlo do comportamento do outro.

É notável como muitas vezes os educadores usam e abusam da palavra motivação quando o que querem verdadeiramente dizer é obediência e submissão. Com efeito, um dos mitos fundamentais nesta área é que é possível motivar alguém. Kohn aconselha os educadores a ignorarem os artigos, os seminários ou workshops com o título, "Como motivar os seus alunos": enquadrar a questão desta forma significa expor-se a um dispositivo e mecanismos de controlo. Por outro lado, se falarmos de uma motivação intrínseca, ela é desnecessária, pois ninguém consegue motivar ninguém.

Motivados pela culpa
A nossa ação ou a nossa dádiva, deve surgir do nosso coração, deve ser motivada a partir do nosso interior, deve ser auto motivada. Para além dos prémios e castigos, como motivação, coação ou incentivo que induz as crianças a fazer isto ou aquilo, muitos pais, especialmente os que deixaram de punir e castigar os seus filhos, encontraram uma técnica alternativa, no seu entender não violenta: a de instigar culpa nos seus filhos. Afinal não saíram do “triângulo das bermudas” de Karpman, apenas deixaram de ser perseguidores para serem vítimas.

Quando uma mãe diz ao seu filho “Magoas-me a mim e ao teu pai quando não limpas o teu quarto, quando não tiras boas notas, etc…” Como não há vítimas sem perseguidores, ao fazer-se de vítima, a mãe está a acusar e culpabilizar o filho de a perseguir com o seu comportamento, na esperança que o filho se sinta suficientemente culpado e que esta culpa o leve a compensar a mãe, completando assim o triangulo, ou seja, tornando-se no salvador da mãe e alterando o comportamento que supostamente a oprime.

É claro que as ações da criança não motivam o sentimento dos pais, mas sim o que eles dizem a si mesmos como resultado das ações do filho. A criança que muda o seu comportamento, para comprazer os pais, fá-lo por se sentir culpada e não porque positivamente quer contribuir para a sua vida e para a vida dos seus pais e da sociedade em geral. Se os pais, ao expressarem os seus sentimentos, referissem a seguir as suas necessidades, então o ato já não seria coercivo, nem violento, nem instigador de culpa na criança; pelo contrário, seria a CNV em ação: -  “A mãe sente-se frustrada quando não comes tudo o que tens no prato, porque quero (ou tenho necessidade de) que cresças forte e saudável”.

Criar laços
A solução entre a preservação da autonomia das crianças e o nosso desejo de que elas assimilem os valores que queremos transmitir-lhes por via da educação, é uma mudança de paradigma e objetivo. O que queremos é criar laços que permitam que todos satisfaçam as suas necessidades. Laços de respeito mútuo, onde as necessidades de ambos, tanto educadores como educandos, sejam igualmente importantes e interdependentes.

Neste novo paradigma de educação, aplicamos às crianças os mesmos princípios que usamos com os adultos: abdicamos de toda e qualquer avaliação em termos de certo ou errado, bom ou mau, substituindo estas avaliações por descobrir se vai ou não ao encontro das minhas necessidades, se está ou não em harmonia com elas. Na prática, isto deve ser feito de forma a não estimular ou provocar culpa ou vergonha nas crianças.

“Tenho medo quando te vejo bater no teu irmão mais pequeno, porque sinto necessidade de que a família seja um lugar seguro”, em vez de “Bater no teu irmão mais pequeno é mau, é covarde”. “Não limpaste o teu quarto, és um preguiçoso”. “Sinto-me frustrado quando me dou conta de que não fizeste a cama, tenho necessidade de que todos contribuam para manter a casa limpa e ordenada”.

Amor incondicional
Não vos deixeis tratar por “mestres”, pois um só é o vosso Mestre, e vós sois todos irmãos. E, na terra, a ninguém chameis “Pai”, porque um só é o vosso “Pai”: aquele que está no Céu. Nem permitais que vos tratem por “doutores”, porque um só é o vosso “Doutor”: Cristo. Mateus, 23-8-10

A autoridade autocrática não tem lugar em CNV nem no mundo novo que Jesus veio inaugurar; somos todos irmãos de facto e o que conta é a autoridade moral com a qual desempenhamos um serviço na comunidade. Todos os serviços são importantes para a vida comunitária, o desempenho de uma função, de um serviço, não nos dá nenhum poder sobre os outros; a única autoridade é a de Deus que é pai de todos. Portanto, o pai não tem autoridade sobre os filhos nem os mestres sobre os discípulos.

Este diálogo só funciona quando ganhamos autoridade moral sobre as crianças, no sentido de que estamos com elas quando elas mais precisam; muitos pais, pelo contrário, só se fazem visíveis ou presentes quando é ocasião de punir.

Uma criança pode um dia chegar a casa e desabafar “ninguém gosta de mim”; a tentação é negar que seja verdade ou dar conselhos. Nestes momentos, o mais importante é o silêncio empático que na prática se pode traduzir num olhar ou num gesto de apoio. Só depois se fazem perguntas que ajudem a criança a encontrar-se a si mesma.

O amor é incondicional e é certo que teoricamente, todos os pais amam incondicionalmente os filhos, mas na vida do dia a dia o que realmente comunicam em comportamentos e em linguagem corporal é precisamente o contrário, pois expressam tristeza e raiva quando as crianças não se comportam como eles desejariam e alegria quando estas fazem o que eles querem. Desta forma, o que as crianças gravam é a condicionalidade do amor dos seus pais, de tal forma que até podem fazer coisas elas mesmas não porque o desejam, mas para obter esse amor em forma de aprovação.

O uso da linguagem não violenta reduz os conflitos no seio da família assim como a rivalidade entre irmãos, pois substitui a luta pelo poder, pela cooperação e confiança. Para isso, os pais devem promover o crescimento emocional dos seus filhos e a autoestima, assim como proteger e alimentar a sua autonomia. Expressar frustração quando estes não fazem o que é para o bem de todos em vez de os julgar o culpabilizar. Fazer pedidos claros, concretos e viáveis e descobrir e escutar as necessidades por detrás da resposta “não.”

Quando uma criança diz ou faz algo que não é do nosso agrado
Não é raro, que uma criança diga ou faça algo menos positivo. É neste momento que devemos respirar fundo e gerir a situação dentro dos parâmetros da CNV, o que, a princípio, pode ser muito difícil e requerer algum tempo. Nestes momentos de crise, o mais certo é que o nosso cérebro reptílico tome conta de nós. Por isso, para nos ligarmos ao neocórtex, devemos dar tempo para que o cérebro reptílico se desligue e observar sem julgar, mesmo dentro da nossa mente. São quatro as nossas opções:
  1. Culpabilizarmo-nos – “Sou um mau pai ou mãe, o meu filho ou filha é assim por minha causa…"
  2. Culpabiblizamos a criança – “És egoísta. Mal-educado, não serves para nada, etc…”
  3. Conectamo-nos com os nossos sentimentos e necessidades – “Sinto-me desiludido, necessito que o meu esforço seja reconhecido.”
  4. Descobrimos os sentimentos e necessidades da criança – “Sentes-te relutante porque queres ter liberdade para fazer as tuas próprias escolhas?”
Quando conseguimos ligar-nos aos nossos sentimentos e necessidades, indiretamente estamos a ajudar o outro a fazer o mesmo e, desta forma, ambos encontram certamente uma saída airosa e satisfatória das necessidades de ambos, mesmo na pior das situações.

O objetivo é que o que quer que as crianças façam, seja porque elas mesmas o escolhem fazer e o fazem por gosto, cientes de que estão a contribuir para que a sua e a nossa vida sejam mais maravilhosas, já que o que fazem vai ao encontro da satisfação das nossas e das suas necessidades. Assim sendo, um pedido pode soar mais ou menos assim: “Gostaria que fizesses isto, satisfaria a minha necessidade, mas se por acaso as tuas necessidades estão em conflito com isso, diz-me, para descobrirmos os dois a melhor forma de satisfazer as necessidades de ambos.”

Escola chacal
Para a sociedade violenta se manter como tal, precisa de ter escolas onde a violência é aprendida e faz parte do currículo. Não se trata apenas de a direção da escola fazer vista gorda em relação ao bullying e só atuar quando as consequências são catastróficas ou quando é demasiado tarde e a vítima se suicidou. A violência institucional é exercida sobre as crianças nos seguintes moldes:
  • Ensina as crianças a obedecer incondicional e acriticamente à autoridade, de forma a que, quando são contratados para um emprego, elas fazem o que lhes é mandado sem levantar questionar.
  • Treina as crianças a trabalhar por uma recompensa externa. A escola não está interessada em que a criança aprenda a enriquecer a sua vida e a vida dos outros, mas que se esforce por obter notas altas, goste ou não goste do tema de estudo, uma vez que estas notas vão traduzir-se no futuro num emprego com salário elevado.
  • Mantém as desigualdades sociais e um sistema de classes ou castas, fazendo-o parecer uma democracia.
Escola-girafa
As escolas em que pais e professores se relacionam como parceiros — onde a comunicação não violenta faz parte de cada interação — são comunidades de aprendizagem e não fábricas impessoais de cima para baixo. " Riane Eisler em As Crianças de Amanhã

Nas suas muitas viagens, por 50 países, Rosenberg ajudou a criar este tipo de escola, onde as relações entre professores, alunos e o resto do pessoal da ação educativa se faz nos moldes da comunicação não violenta.

As crianças têm um papel ativo no processo educativo – Neste sentido, Rosenberg inspira-se no antigo processo socrático da maiêutica, da psicoterapia não diretiva de Carl Rogers e das experiências do brasileiro Paulo Freire. O outro, seja criança ou adulto, não é um saco vazio que eu vou encher de conhecimentos. Os estudantes, os professores, os pais e o resto do pessoal da ação educativa aprendem juntos, uns com os outros, pois todos têm algo a aprender e todos têm algo a ensinar.

A motivação é interna, autónoma, não coerciva – A motivação para o que quer seja que as crianças façam, sai delas mesmas, não é imposta de fora por meios coercivos negativos, como castigos e punições, nem positivos, como prémios e galardões.  A autonomia das crianças é um valor respeitado em escolas-girafa, porém não se afirma a autonomia desligada da interdependência. A verdade é que somos tão autónomos quanto interdependentes uns dos outros; um valor não pode ser afirmado em detrimento do outro. Os alunos são motivados por valores, necessidades e desejos intrínsecos a si mesmos, e não impostos ou sugeridos a partir de fora.

A autodisciplina substitui a disciplina assente na obediência motivada pelo medo ao castigo – Nesta escola as crianças não são disciplinadas, mas autodisciplinadas; isto porque estão convencidas do valor da disciplina pelo que esta não é imposta a partir de fora, mas querida e adotada a partir de dentro. As regras de funcionamento da escola são discutidas e acordadas por todos os que são afetados por elas.

As crianças respeitam a autoridade em vez de a temer – A autoridade não é autocrática nem sequer democrática, mas é sobretudo uma autoridade moral que conquista o coração das crianças por intermédio da empatia e da compaixão; assim sendo, existe um respeito e compreensão mútuo entre professores e alunos e colaboração a todos os níveis.

As crianças numa escola-girafa aprendem a expressar-se com os colegas e professores de forma positiva, evitando qualificativos, preconceitos, comparações e críticas. Expressam os seus sentimentos quando algo não corre bem e procuram descrever esses sentimentos. Seguidamente, perguntam aos outros, sejam eles pais, colegas ou professores como gostariam que eles atuassem, fazem esses pedidos de uma forma positiva e clara. Por fim, fazem-se responsáveis pelas próprias ações e decisões.

Para Rosenberg, nem só a aprendizagem do currículo, as boas notas, e o sucesso académico em geral são importantes para o futuro das crianças; a relação que a criança estabelece com o professor e com os colegas faz parte da aprendizagem e é igualmente importante para uma vida bem-sucedida no futuro. As escolas devem preparar em geral para a vida e não só para o exercício de uma - profissão. Se uma criança aprende a resolver conflitos nos moldes da comunicação não violenta está a ser preparada não só para a vida profissional, mas também para a vida em geral.

O importante não é apenas o destino da viagem, o dia da formatura, mas também o processo que levou até lá - as relações vividas e a forma como foram vividas, os conflitos experimentados e resolvidos, a forma como se aprendeu - tudo isso faz parte da bagagem que a criança leva para a sua vida e não só um papel, um diploma.

As crianças resolvem os próprios conflitos – Algumas escolas têm na sala de aula um lugar chamado o canto da mediação; quando surge um conflito entre dois alunos, um terceiro faz de mediador entre os dois, usando com eles a técnica não violenta de resolução de conflitos.
Pe. Jorge Amaro, IMC