15 de novembro de 2016

Misericordia, não sacrificios!

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Este Jesus sem abrigo deixa-te um lugar para te sentes ao seu lado, 
e possas ser misericordioso com Ele e todos…
Estou farto de holocaustos de carneiros, de gordura de bezerros. Não me agrada o sangue de vitelos, de cordeiros nem de bodes. (…) Não me ofereçais mais dons inúteis: o incenso é-me abominável; (…) as reuniões de culto, as festas e as solenidades são-me insuportáveis (…) Quando levantais as vossas mãos, afasto de vós os meus olhos; podeis multiplicar as vossas preces, que Eu não as atendo. (…) Cessai de fazer o mal, aprendei a fazer o bem; procurai o que é justo, socorrei os oprimidos, fazei justiça aos órfãos, defendei as viúvas. Isaías 1, 11-17

Eu quero a misericórdia e não os sacrifícios, o conhecimento de Deus mais que os holocaustos.
Oseias 6, 6

Os profetas do Antigo Testamento, eram as pessoas certas para os momentos certos. A sua voz, os seus oráculos provinham de uma análise da realidade, os problemas concretos do povo à luz da Palava de Deus e as soluções que apresentavam para os vários problemas e situações eram de inspiração divina. A solução, intuída pelos profetas, era sempre destabilizadora do “status quo” existente porque, frequentemente, a análise era crítica das estruturas sociais e formas de vida que nada tinham que ver com os desígnios de Deus.

A religião que não transforma a vida é ópio
Conta-se que um muçulmano ia com uma faca a perseguir o seu inimigo para o matar, enquanto o perseguia ouviu a voz do Almuadem no alto do minarete da mesquita chamando os fiéis à oração. Interrompeu abruptamente a perseguição, deixou cair a faca, estendeu o seu tapete no chão voltou-se para a Meca e pôs-se a rezar. Terminada a oração enrolou novamente o tapete empunhou de novo a faca e retomou a perseguição do seu inimigo.

Esta é somente uma caricatura de como a pratica da religião pode chegar a estar completamente divorciada da vida. O mesmo ou parecido pode acontecer com os fiéis de todas as religiões. Quando Karl Marx disse que a religião é o ópio do povo, o seu ponto referencial era mais o cristianismo que qualquer outra religião.

Os que frequentam a igreja vão são os piores – Diz um velho ditado; de facto, frequentemente observamos que a pratica dos rituais prescritos de cada religião, não é fator de crescimento pessoal dos seus fieis; em muitas situações até se comportam pior que os que são ateus ou agnósticos; é como se depois de dar a Deus o seu devido o resto das suas vidas não fosse da Sua conta.

A misericórdia como sacrifício de si mesmo
Os profetas do antigo Israel eram unânimes em condenar um culto separado da vida e uma vida separada de um culto conivente e convivente com a injustiça e a corrupção. Não podendo ter as duas coisas, justiça e misericórdia juntamente com sacrifícios, a ter de escolher, já o Deus do Antigo Testamento, prefere a misericórdia aos sacrifícios. Cristo recordou aos judeus do seu tempo que o Deus seu Pai que o enviou mantém esta mesma escolha quando lhes diz peremptoriamente: Ide aprender o que significa: Prefiro a misericórdia ao sacrifício. Mateus 9,13

Ao preferir a misericórdia aos sacrifícios, Deus não está de maneira nenhuma a abdicar dos sacrifícios; ele não veio revogar nada da lei só a veio aperfeiçoar. O sacrifício do seu filho na cruz veio substituir os antigos sacrifícios pelos novos sacrifícios; de facto na hora em que Cristo morria na cruz o véu do tempo, o santo dos Santos, rasgou-se como para dizer acabaram-se os sacrifícios da antiga lei e começam os sacrifícios da nova lei.

A nova lei é o amor por isso os sacrifícios que valem, depois de Cristo ter dito e colocado em prática que não há maior amor que dar a vida pelos seus amigos, não são os sacrifícios de cordeiros e bodes; ou seja o dar do que tenho e me sobra aos outros; também não é dar coisas exteriores a mim, mas sim dar-me a mim mesmo. Ante tudo, o sacrifício do meu ego esse é que é agradável a Deus. «Se alguém quer vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz, dia após dia, e siga-me. Lucas 9, 23

No extrañeis dulces amigos que tenga mi frente arrugada, / yo vivo en paz com los hombres / y en guerra com mis entrañas. - É a este sacrifício existencial que o poeta popular, António Machado, alude nesta quadra:  para estar em paz com os homens eu guerreio, sacrifico os meus instintos, as minhas baixas tendências, a ira, o instinto de vingança, o orgulho, o egoísmo, até as minha ideias; tudo isto, eu sacrifico, para viver no amor e na paz com os meus semelhantes.

Ao preferir a misericórdia aos sacrifícios, Deus está a ter as duas coisas numa, pois não há misericórdia que não implique sacrifício; não o sacrifício de algo que me pertence, mas o sacrifício de mim próprio ou uma faceta do meu ego.

Na parábola do Bom Samaritano vemos os dois mundos em confronto; o mundo da antiga aliança, simbolizado no sacerdote e no Levita que obcecados pelo sacrifício de coisas externas a si mesmos passam de largo à necessidade humana sem sentir compaixão, e o mundo da nova aliança, simbolizado no bom samaritano que ante a miséria humana responde com misericórdia; sacrificando-se pelo indigente meio morto, deliberadamente descarrilando-se do seu caminho, pondo de parte a sua vida e os seus negócios.

Esta parábola põe a relevo o quão uma religião que supostamente existe para nos humanizar pode fazer tudo o contrário. Foi precisamente a religião que esvaziou o coração daqueles clérigos de compaixão e os impediu de socorrer aquele que precisava urgentemente de assistência.

Os sacrifícios da antiga lei, os sacrifícios de coisas exteriores a mim, quanto muito fazem-me bem a mim e só a mim. O sacrifício da nova lei, a misericórdia, ou seja, o sacrifício de mim mesmo faz-me bem a mim e aos outros. Nesta óptica, jejuar guardando o que não comi para comer mais tarde é um jejum da antiga lei que me aperfeiçoa só a mim; jejuar dando o que poupei a quem o precisa é um sacrifício da nova lei, pois me aperfeiçoa ao mesmo tempo que me faz solidário com o pobre e desvalido. Quem diz o jejum diz as idas a pé a Fátima, e até as voltas de joelhos na capelinha das aparições.

Sede perfeitos versus sede misericordiosos
Sede perfeitos, assim como vosso Pai celeste é perfeito. Mateus 5, 48
Sede misericordiosos como vosso Pai é misericordioso. Lucas 6,36

Que ganho eu com a perfeição do outro? Nada, posso até sofrer se ele usa da sua perfeição e superioridade moral para me criticar ou humilhar. Ao contrário, nada tenho que temer daquele que é misericordioso pois ante a minha miséria será solidário e compassivo.

O cristianismo não é como o budismo, um meio de perfeição e progresso espiritual individual para pertencer a uma pretensa elite de iluminados. Aperfeiçoar-se sem ter em conta os outros não é perfeição nenhuma; um melhoramento individual, que nalguma parte do seu processo não leve a um melhoramento dos outros e do mundo em geral, é negativo pois vai estabelecer mais diferenças sociais, e estas, acabarão por criar mais injustiças. No cristianismo o meu progresso espiritual passa pelo progresso social e vice-versa.

No cristianismo sempre que te diriges a Deus, Ele pergunta-te, como o fez a Caim, onde está o teu irmão? E dentro da filosofia existencial que diz que "cada um sabe de si, Deus sabe de todos” responder, como fez Caim: porventura sou eu o guardião do meu irmão, não é a resposta que Deus quer ouvir… Génesis 4, 9
Pe. Jorge Amaro, IMC

1 de novembro de 2016

Confessar-se directamente a Deus

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É muito frequente encontrar católicos que dizem que não precisam de sacerdote para reconciliar-se com Deus; dizem, “se Deus conhece bem os nossos pecados, e é Ele que perdoa, para que serve o sacerdote? Confesso-me diretamente a Deus”.

Com efeito, no sacramento da reconciliação o sacerdote é somente um intermediário, que medeia entre o penitente e Deus; atua “in persona Christi”, ou seja, representa a Cristo que é quem de facto perdoa. Associados ao capitalismo, os intermediários estão hoje muito mal vistos. Mediando entre produtores e consumidores, são vistos como parasitas da sociedade pois são os que mais, e os que sempre lucram em qualquer transacção comercial.

O consumidor procura comprar directamente ao produtor porque compra mais barato; e o produtor procura vender directamente ao consumidor pois vende mais caro. Em cada vez mais situações os intermediários ficam de fora. Quer queiramos, quer não, a prática do sacramento da reconciliação tem sido negativamente influenciada por esta ideologia negativa a respeito da pessoa do intermediário.

No entanto, e apesar do dito, o sacramento da reconciliação continua a fazer sentido por razões que têm que ver com a mesma natureza humana assim como por razões bíblicas e teológicas.

Razões de natureza humana
O homem é intrinsecamente um ser social porque a sua individualidade - carácter e personalidade, é o resultado da interação com os outros, a começar pelos pais, seguidos dos irmãos, tios, primos, professores, catequistas, colegas de escola etc. Porque se formou na interação, esta mesma interação, muito mais que a introspecção, é um meio privilegiado para o ser humano se conhecer a si mesmo como pessoa.

Diz-se que a cara é o espelho da alma pois é a parte do nosso corpo que mais nos define; e precisamente a cara é também a única parte do nosso corpo que não podemos ver directamente. Vemos a sua imagem num espelho, não a vemos tal qual ela é, pois não há espelhos perfeitos. Só os outros a vêm tal qual ela é; da mesma forma, para ver bem o nosso íntimo precisamos da ajuda de outro.

A Janela de Johari diz-nos que o nosso EU, está dividido em 4 instâncias e dessas quatro só somos conscientes de duas:

  • Eu aberto – Constituído por tudo o que, eu e os outros sabem de mim pela minha partilha; actividades e projectos públicos e conscientes, assim como os sentimentos partilhados.

  • Eu Cego – Constituído pela linguagem corporal e por toda a espécie de mecanismos e dos quais os outros se dão conta e eu não. Eu posso ter um cisco na cara que é visível aos outros e não a mim; só os outros me podem ajudar a possuir esta dimensão da minha personalidade. Só quem está fora da floresta pode ver a floresta, quem está dentro só vê arvores. Até Jesus para possuir esta dimensão pergunto aos seus discípulos “Quem dizem os homens que eu sou?”. Precisamos do “feedback” dos outros para saberemos verdadeiramente quem somos.

  • Eu secreto – Constituído pelas motivações secretas do meu comportamento; sentimentos ocultos, a minha privacidade e os meus segredos; ou seja, aquilo que eu conheço, mas não quero que os outros saibam de mim.

  • Eu desconhecido – Constituído pelos mecanismos de defesa, e por tudo o que Freud chama de inconsciente, e que é a causa de uma variedade de comportamentos para os quais nem eu nem os outros têm explicação. Como conhecer significa poder e controle, o que eu conheço de mim eu posso controlar; o que não conheço controla-me a mim. Para conquistar cada vez mais terreno ao meu inconsciente também preciso da ajuda dos outros.

Para atingir a vida em plenitude, a pessoa humana deve possuir liberdade de movimentos e de expressão, ser independente e senhor do seu destino, ser autónomo e responsável pelas suas opções. Neste sentido, o ser humano não obedece a nenhuma instância para além da sua consciência moral que se supõe bem formada e informada.

Porém, como diz o proverbio, “Ninguém é justo juiz em causa própria”. Nem sempre a consciência moral está bem formada e informada; há consciências morais escrupulosas, que veem o mal onde este não existe, e se culpabilizam para além do que é razoável, e há consciências morais laxas que não veem o próprio mal.

Exemplo disto é o caso do rei David que cometeu adultério com a mulher de Urias e enviou este para a frente da batalha para que fosse ferido mortalmente; depois de tudo isto fazer não se sentiu culpado, foi preciso o profeta Nathan lhe contar uma parábola que espelhava bem a magnitude do seu pecado, para que David reconhecesse o crime por si cometido. (2.º Samuel 11- 12).

É certo que quando tenho problemas físicos recorro a um médico; quando tenho problemas psíquicos recorro a um psicólogo; a quem devo recorrer quando tenho problemas morais e a minha consciência me acusa? Como posso eu libertar-me da culpa sem a ajuda de alguém?
   
Há estudos que revelam que os católicos praticantes, porque têm o sacramento da reconciliação, precisam menos de psicólogos e de psiquiatras que os protestantes que não o têm. Todos conhecemos a necessidade de desabafar, para isto precisamos de um amigo, de um sacerdote ou de um psicólogo para faze-lo em segurança; não podemos desabafar sozinhos para uma parede, precisamos de alguém que nos ouça empaticamente.

Só me liberto da culpa se a partilho com alguém o que não sai fora de mim, e é escutado por alguém, fica dentro de mim envenenando o meu íntimo. Os judeus experimentavam uma catarse libertadora quando projectavam todas as culpas sobre um bode, chamado bode expiatório. Há certos pecados e certas culpas das quais não nos podemos libertar sozinhos, e confessa-las directamente a Deus não ajuda, precisamos de as assumir e chorar sobre uns ombros concretos e só assim nos podemos libertar delas.

O remorso da culpa e a obsessão do trauma são mecanismos psicológicos e morais dos quais a pessoa não se pode libertar sozinha. Recordemos o primeiro filme do Exorcista, a rapariga só se sente libertada do demónio que a possui quando este sai dela e entra no sacerdote que a está a exorcizar. Da mesma forma só nos sentimos verdadeiramente livres de assuntos que nos perturbam quando alguém psicologicamente e moralmente qualificado nos ouve.

Porque somos seres sociais, só nos podemos livrar de certas coisas que envenenam a nossa alma, desabafando com uma pessoa qualificada para nos ouvir. Por esta razão, Jesus deu aos sacerdotes a faculdade para perdoar os pecados em seu nome, tanto individualmente no confessionário como comunitariamente numa absolvição geral no contexto de uma celebração penitencial comunitária.

Razões bíblicas ou teológicas
Pois bem, para que saibais que o Filho do Homem tem, na terra, poder para perdoar pecados - disse Ele ao paralítico: 'Levanta-te, toma o teu catre e vai para tua casa.» E ele, levantando-se, foi para sua casa. (Mateus 9, 6-7)

Dar-te-ei as chaves do Reino do Céu; tudo o que ligares na terra ficará ligado no Céu e tudo o que
desligares na terra será desligado no Céu.» (Mateus 16, 19 e João 20, 21-23)

“Confessai, pois, os pecados uns aos outros e orai uns pelos outros para serdes curados. A oração fervorosa do justo tem muito poder”. (Tiago 5,16)

O sacerdote, Homem de Deus consagrado para representar a Cristo “bode expiatório” dos pecados de toda a humanidade, cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo, é de por si um sacramento, ou seja uma pessoa visível que representa Deus invisível. Continuador da obra de Jesus que incluía a faculdade de perdoar os pecados; pontifex ponte entre Deus e os homens pelo que, não estando ainda com Deus, vive já na terra a vida que todos viveremos no céu, por isso representa a Cristo e é o seu embaixador para continuar na terra aqui e agora o que Cristo iniciou à dois mil anos em Israel.

Absolução individual ou comunitária?
Para que haja sacramento tem de haver alguém que represente a Cristo; esse alguém é o sacerdote que pelo sacramento da Ordem foi revestido e investido com as mesmas funções que Cristo exerceu enquanto viveu entre nós.

Não é imprescindível que o sacerdote ouça os nossos pecados; como acontece em celebrações penitenciais comunitárias e individualmente quando confessamos alguém que fala uma língua que nós desconhecemos, como acontece nos primeiros anos nas missões. O que é imprescindível para que haja sacramento, é a presença do sacerdote.

Em Marcos 2, 1-12 Jesus disse ao paralítico: “Os teus pecados estão perdoados” Jesus perdoou os pecados do paralítico sem os conhecer, sem ouvir o paralítico confessa-los. Perdoo-lhos porque grande era a sua fé de que encontraria saúde junto de Jesus.

Quando o sentimento de culpa é grande, precisamos de desabafar ou de direção espiritual, é bom recorrer à confissão individual; como somos seres sociais, do ponto de vista pastoral, psicológico e pedagógico, a confissão e absolução individual têm mais força e a alegria de nos termos libertado do peso da culpa é muito superior pelo que a confissão individual é de preferir sempre que possível.

Porém quando não é possível e de todo impraticável a confissão uma celebração comunitária onde depois de um exame de consciência extensivo e intensivo guiado pelo sacerdote, que traz à consciência as nossas faltas e provoca no nosso coração o arrependimento, a absolvição geral e comunitária do sacerdote tem o mesmo valor teológico e sacramental que a individual.
Pe. Jorge Amaro, IMC